30 de junho de 2011

SE O TAL AMOR BORBULHA NUMA FONTE

Se o tal amor borbulha numa fonte
Com o gás venenoso que contém
E inebriado o aspire alguém,
Na pretensa visão de um horizonte

Que lhe possa trazer incontinente
Os prazeres na vida prometida,
Pode ser que tal vida pretendida
Imagem voascomigo.blogspot.com.
Se lhe ocorra no tempo do presente,

Como um cometa em velocidade,
Ou na breve parcela de uma hora.
Mas, se num átimo o coração afaga,

Esse tempo, essa luz que não se apaga
Morarão em seu peito com a demora
Que ultrapassa toda a eternidade.

29 de junho de 2011

CARÊNCIA

A primeira chuva daquele verão arrancou do chão seco o cheiro forte e gostoso de terra molhada. Esse é um fato corriqueiro no interior. Só que naquele verão foi um pouco diferente para Chico Albino.
Vinha ele em cima de seu cavalo, selado a gosto, trote manso pela estrada de Santo Eduardo, rumo de Liberdade. Aquele cheiro penetrou-lhe com força nas narinas, de forma irresistível. Sem controle, apeou do baio, chegou até o barranco e, com a fome dos imortais, comeu um bom eito de terra. Satisfeito, porém um tanto desconfiado da sua incontinência, tornou a montar no cavalo e daí duas horas deu a viagem por terminada.
Chegando à vila, procurou o Edgard da farmácia e contou-se o ocorrido. Edgard ouvia e analisava. Receitou-lhe, por fim, um lombrigueiro.
- Sua barriga é lombriga pura, amigo Chico! Fique de jejum e tome isso, que é tiro e queda!
E quase foi mesmo.
Na verdade, Chico Albino estava era depauperado, subnutrido, carente de ferro e outros minerais, que a terra generosa ofereceu-lhe através do olfato.
O lombrigueiro quase o mata, agravado que ficou seu estado de debilidade geral. Aprendeu, porém, com sacrifícios, que o instinto ainda é uma boa forma de preservação da vida. Bem que ele já havia visto cachorro comendo capim.

Marino Marini, “Cavaleiro" (1947), em
ninhodogaviao.zip.net.

28 de junho de 2011

LE CHAT DE MADAME CORALIE

Vamos combinar: tudo na vida tem seu limite, sua adequação. Mas há algumas pessoas completamente sem noção.
Por exemplo, no condomínio em que mora Madame Coralie - o Tour Eiffel -, no bairro de Icaraí, um vizinho, dois andares abaixo, na mesma coluna, resolveu comprar um papagaio e começou a ensiná-lo a falar.
Até aí nada demais, não fosse esse vizinho, sobre ser antipático, nojento e esquisito, também gago e desbocado.
Pois então! De cada frase que, com dificuldades, sai da boca cheia de dentes daquela execrável criatura, metade se faz de palavrões e impropérios. Todos com alguma sílaba repetida, como é comum nesses casos.
Agora, não bastasse ficar ouvindo, através da parte interna do prédio, a besta do vizinho vociferando, os moradores de fundos têm de aguentar essa coitada ave, mal educada na vida, a repetir o comportamento condenável do seu dono. E é só a mínima contrariedade, para que ela despeje no ar o lixo vocabular que sai de sua garganta de taquara rachada - o poleiro colocado sobre o parapeito da área de serviço:
- Cacacete! Memerda!
Por isso é que, estribada na moral e nos bons costumes e no desejo de tranquilidade a presidir o convívio, Madame Coralie, francesa dos quatro brioches e outros tantos croissants, viu-se obrigada a chamar o Ibama, para dar um fim àquele despautério.
Além deste problema, quase sempre tinha de suportar ainda o alto volume do rock do apartamento 1006, imediatamente abaixo do seu, onde moravam cinco rapazes. Vida de condomínio é mesmo um incômodo!
Certo dia mesmo, não aguentando mais o hard rock de Machine head, do Deep Purple, tocado lá nas alturas, soou a campainha e, tão logo a porta lhe foi aberta, invadiu o recinto, dirigiu-se à parafernália eletrônica de onde saía aquela massa sonora ensurdecedora, girou o botão até que o volume estivesse baixo e disse para o boquiaberto jovem, com o sotaque de Brigitte Bardot já entrada em anos:
- É assim que se ouve musique civilizadamente!
Deu um tour sobre suas chinelas de crochê, os cabelos amarados num coque ralo, e voltou ao seu apartamento, no décimo primeiro andar.
Justifica-se, assim, que não tivesse o mínimo constrangimento em acionar o Ibama, depois da recusa da delegacia do bairro, sob a alegação de que ave dizer palavrões não era crime capitulado no Código Penal, pelo que eles, infelizmente, não poderiam fazer nada, "e passe bem".
Quando ainda tentou argumentar com o policial, teve como resposta sugestão mal-educada que refletia também cultura de fundo de botequim do homem da lei:
- Isso aqui é Brasil, minha senhora! Por que não volta para a Espanha?
Depois de algum tempo, tornou a entrar em contato com o Ibama e soube que, mais uma vez, os funcionários estavam em greve, sem perspectiva de retorno tão cedo.
Irritada e mais isolada que Maria Antonieta durante a Revolução, resolveu passar a solução do problema para Robespierre, seu gato de estimação, de comportamento deletério.
Vestiu um colete de frio no bichano, amarrou-lhe um cordel grosso ao redor e ficou aguardando a saída de casa do vizinho, sempre indicada pela despedida do papagaio:
- Teté lologo, lolouro viviado!
- Teté lologo, Sansandro viviado! Cucurrupaco!
Pelo televisor, através do circuito interno, assegurou-se da saída dele. Pegou o gato amarrado pelo meio e protegido pelo colete e o desceu, através do cordel, até que ele atingisse o andar do papagaio.
A carnificina empreendida no 906, com os gritos da desesperada ave atacada por Robespierre, não teve testemunhas àquela hora da tarde. Apenas alguns ouviram o barulho; ninguém viu!  
Retrato falado de Robespierre (zazzle.pt)
O gato, rebocado pelo cordel, voltou para casa com a boca cheia de penas verdes. Madame Coralie limpou a boca e os pelos do bichano e o trancou no quarto para que se acalmasse. Mais tarde mimoseou o felino carrasco com leite morno em prato de ágate, decorado com desenhos da fauna brasileira.
O regime do terror tinha sido implantado no Tour Eiffel. O próximo não se engraçasse. Robespierre estava com o alvará dos jacobinos para agir.

27 de junho de 2011

MARINHAS (II)

J. Pancetti, Mar grande, 1954.
VI

pancetti morreu no mar
não por afogamento
mas por uma indelével maneira
de respirá-lo colorido

VII

esta baía inunda meus olhos meus ouvidos
só não lava meu corpo
que sua beleza panorâmica se desfaz
nos detritos da lixeira a que a reduziu
a depredação dos homens

VIII

essas águas trouxeram os colonizadores
os mercadores os piratas os escravocratas
só não trouxeram a liberdade
a saúde e a riqueza
apenas levaram os corpos dos afogados
apenas lavaram os corpos dos bronzeados
(Imagem em varejototal.zip.net.)

IX

chegam ao abrigo as águas do oceano largo
passeiam pela baía para cumprir seu percurso milenar
e saem maculadas sob os cacos das embarcações
tão escuras
elas que cristalinas
tão envergonhadas
elas que soberbas

X

a cada ano o homem aterra o mar da baía
sob não importam que razões
a cada ano o mar recua sob a terra
como se nunca tivesse sobrepujado o homem

26 de junho de 2011

MAIS QUE...

Camille Claudel, La valse/Les
valseurs, 1899-1905.
Museu d'Orsay.
mais que um jeito de dizer mulher
te amo
é esse meu jeito estranho só movimento
do corpo da boca
dos olhos perdidos entre o sim e o não

mais que um desejo de possuir-te toda
mulher
é esse meu desejo tímido de parecer
que não estou aos teus pés
quando só estou

mais que uma vontade de encontrar-te sempre
nas ruas
é essa minha vontade de não existir
sem ti por um só instante ou me enganar
que o tempo é tudo que não tenho

mais que um modo de abraçar teus sonhos
de menina
é essa minha ânsia de tornar-me imenso
além das fronteiras minúsculas do meu ser

25 de junho de 2011

PEQUENOS ANÚNCIOS II

Este blog, vira e mexe, recebe solicitações para publicar anúncios de empresas e profissionais dos mais diversos ramos.
Confesso-lhes que jamais tive a intenção de ganhar dinheiro com ele, porque não contribuí para o INSS da Internet. No entanto, como sei que uns e outros aí estão faturando horrores com suas páginas virtuais, resolvi, mais uma vez, tentar melhorar minha conta bancária, que anda no vermelho (o gerente até me mandou um convite para visitá-lo).
Por isso, aqui estão novos pequenos anúncios, que, espero, possam trazer dicas de alguma coisa de que vocês estejam realmente precisando muito.
SAPATARIA: Fazemos sapatos por encomenda. Estamos adaptados à nova legislação: sapatos, sapatilhas e sapatões, nas sete cores do arco-íris. Atendo também a pés héteros de ambos os sexos, sem preconceitos.
MOINHO: Moemos grãos em geral e em particular, principalmente trigo, para a fabricação de pizzas especiais. Atendemos grandes clientes. Ligar gratuitamente: 171 (Brasília). Endereço anexo a certo edifício na Praça dos Três Poderes.
PROCTOLOGISTA: Dedo adequado, no calibre certo, direto ao reto, sem bolinações e sacanagens. Mantenho sigilo absoluto. Não sou ingrato: depois envio flores e caixa de bombons.
CANCEROLOGISTA: Após a confirmação da biópsia, indico advogado conveniado, de muito boas referências, para orientação na feitura do testamento, e padre, para encomendar a alma. Se desejar, indico também o cartório para registro da última vontade. Não cobro 10%, mas pagamento só antecipado.

ESPÍRITA VIDENTE CRIMINAL: Recentemente chegada do FBI, com roncó na ACADEPOL e na INTERPOL. Traz a pessoa armada em três dias, na porta da delegacia. Obstrui os caminhos do tráfico e do descaminho. Algema espíritos de porco e criminosos notórios. Desenrola inquéritos complicados e investigações obscuras. Leva o investigador ao covil do banditismo, com trabalho simples e direto e uso de GPS importado.
ANÃO DE CIRCO: Tenho a maior disposição para o trabalho, apesar de prejudicado verticalmente. Estatura e diâmetro de acordo com vários calibres de canhões. Velocípede próprio, para me reapresentar rapidinho ao local de trabalho, após o lançamento.
FUNERÁRIA: Viagem tranquila à sua última morada em veículos luxuosos e silenciosos. Sem sobressaltos. Carpideiras de classe, para economizar lágrimas da família. Não tema! Serviço de dar nas vistas. Devolvemos o dinheiro, em caso de não satisfação.
BANCO DE SANGUE: Contratamos coletores de sangue hemofóbicos (não confundir com homofóbicos, que dá processo) para os tipos A, B, AB, O e OB (durante os previstos três dias), positivos e negativos, ativos e passivos. Vampiros não terão seus currículos analisados.
DENTISTA: Distraio o dente, enquanto o extraio, sem trocadilho infame. O dente sai dançando, soltinho e leve. E o cliente, banguelo e com um rombo na conta bancária.
COPIDÉSQUI: Fasso revisões atualizada de testo de acordo com o livro novo de portuguez do MEQ. Tô pur dentro das novidade. Agaranto servisso rapido.
MAQUIADOR-CONTADOR: Profissional formado em duas profissões. Maquio balanços, balancetes e declarações de renda. Serviço imperceptível. Parece natural. Resistente a perícias, chuvas e trovoadas.
METEOROLOGISTA: Perdi o emprego por causa de dois moleques argentinos, El Niño e La Niña, que esculhambaram minhas previsões meteorológicas (Sempre os argentinos!). Estou-me oferecendo para previsões astrológicas. Entendo tudo de planetas, satélites, estrelas e constelações. Só não leio mãos, nem jogo búzios. O resto é comigo mesmo!
PASTOR-DESPACHANTE: Faço despacho de almas cândidas para o Paraíso, por contribuição de acordo com os pecados cometidos e as posses dos familiares. Trânsito livre com o Além. Experiência no ramo. Para os enfermos desenganados, aceito pagamento parcelado. Morte súbita, pagamento no ato da encomenda. Serviço garantido. A alma não volta para reencarnar nem em cachorro.
FÍSICO NUCLEAR NIPÔNICO: Recentemente chegado do Zapon, aceito emprego em baraca de pastel em feira zaponesa ou nordestina. Antigo rocal de trabário entrou em corapso e fiquei a ver partícuras. Já faro português sem sotaque, né?
BENZEDEIRA: Benzo, rezo, tiro encosto, alivio pescoço-duro, dor-de-olhos e dor-de-cotovelo, escandescência e espinhela caída. Ajudo a escolher nome de menino pequeno e de animal de pasto. Removo bicheira com três orações e esporão no pé com duas. Só não trago a pessoa amada, porque não me meto com coisa sem solução.
Imagem em fresh-fish.blogspot.com.

24 de junho de 2011

NOITE DE SÃO JOÃO


Guignard, Noite de São João, 1961.
Acervo do Museu de Arte da Pampulha
 


há balões no ar
e peso nos corações das gentes.
não serão os versos malditos
que me tirarão do caminho.
bem sei que a estrada inexiste
como a pedra é nada.
ando em círculos e não pergunto
cur quomodo qui prodest.
exijo pouco
e rumino a vida devagarzinho.

23 de junho de 2011

A TÍTULO PRECÁRIO

Quantos raios cairão sobre nossas pesadas cabeças?
Quantas quedas até o Gólgota?
Quantos crimes ficarão impunes a cada período judiciário?
Quantas lágrimas, ah! quantas lágrimas?

Meus olhos estão secos
E sobre os ombros não levo nada além dos séculos.
Os sonhos adiam-se indefinidamente
Neste país tropical abençoado por Deus
E uma vaga indigestão no estômago vazio passeia em muitos.

O voto que utilizamos como revólver contra nossos próprios tímpanos
Esvaiu-se nas primeiras manchetes de jornal.

E temos todos de continuar cidadãos desta pátria brasileira
A título precário.

Imagem colhida em marilandgeleiageral.blogspot.com.

22 de junho de 2011

UM RIO CORTA AS CIDADES


Rio Itabapona. Foto por Leandro Raposo em panoramio.com.

                       Uns meses do ano
                       O leito quase esgoto
                       Outros
                       O borbotão de barro e lama
                       Às vezes
                       Enchentes choros e soluços
                       Sempre
                       O Itabapoana

21 de junho de 2011

ATA DA SESSÃO EXTRAORDINÁRIA DE UMA CENA ORDINÁRIA

Aos vinte e cinco dias do mês de março do ano de mil novecentos e setenta e sete, reuniu-se a Comissão de Inquérito, designada para o fim de apurar o ocorrido num dos corredores do Fórum desta Capital do Estado do Rio de Janeiro, no último dia dezoito próximo passado. Conforme previsto pelas más línguas e colegas fofoqueiras de sempre, deu-se o fatídico encontro entre partes, de um lado, Luzia da Silva Penteado e, de outro, Marielisa de Souza Santos, ambas funcionárias efetivas do quadro de servidores do Judiciário, concursadas e empossadas de acordo com a legislação em vigor. Consta que, saindo a primeira da sala destinada a micção e outras providências orgânicas, após ajeitar o penteado, a fim de sempre fazer jus a seu sobrenome, encontrou-se ex abrupto, na esquina do corredor que demanda a sala da Diretoria do Fórum, com a segunda, que a tal sala se dirigia, com a finalidade de também atender as suas necessidades orgânicas. Tal encontro, no entanto, passou longe de ser uma mera coincidência, como apurado posteriormente ficou, por informações de colegas de trabalho da segunda citada e pela própria, e se constituiu naquilo que vulgarmente se chama, data venia, furdunço. Pega no desaviso, a primeira citada, senhorita Luzia da Silva Penteado, teve seus cabelos agarrados pela segunda, senhora Marielisa de Souza Santos, que, in continuum, começou por arranhar-lhe as alvas faces e a ofendê-la com palavras de baixo calão, que esta Comissão apurou serem “piranha, vagabunda, vaca”, dentre outras que não devem constar desta ata, por motivo de decoro judiciário. Não restou, assim, à primeira – falta de quem as impedisse de dar continuidade àquele dito furdunço, concessa maxima venia –, revidar a agressão, nos mesmos moldes e qualidades, inclusive com utilização de termos que aqui se omitem, por se tratar de adjetivação pesada demais para o dito decoro judiciário. Basta dizer que, em seguimento, rolaram ambas as servidoras pelo chão do dito corredor, aos gritos e impropérios próprios de tais acontecimentos, pelo que acorreram ao local os colegas serventuários que, no momento, se encontravam em suas salas fazendo jus ao múnus público a que se dedicam. Desapartadas as contendoras e levadas à presença do Diretor de Pessoal, apurou-se que o motivo da disputa tinha por nome e sobrenome o até então zeloso serventuário Francisco Garcia dos Anjos que, de fato e de direito, de anjo não tinha nada, visto que, em sendo casado, assim mesmo mantinha consórcio carnal com ditas servidoras, ao arrepio das regras morais impeditivas tanto duma quanto doutra de se darem a tal desfrute; a primeira, porque, dizendo-se evangélica e sendo impedida pelo próprio pai, até aquela altura da vida, de andar de calças compridas ou roupas decotadas, para manter-se casta e recatada, usufruiu dos benefícios carnais que o dito servidor se dispunha a lhe oferecer; a segunda, porque, em sendo casada e mãe de filhos, não se coadunava com sua condição também o desfrute a que se entregou com o tal dito servidor. Chamado a esclarecer pormenores da conduta das duas servidoras, o senhor Francisco Garcia dos Anjos, como sói acontecer, eximiu-se de qualquer responsabilidade, declarando-se casado e marido fiel, na medida do impossível, vez que, em várias oportunidades, tinha resistido às tentações da carne com as ditas colegas de trabalho, que, via de regra, como disse, “jogavam charme para cima da sua pessoa”. Ouvidas em separado, tanto a primeira indigitada quanto a segunda foram uníssonas em declarar que, por várias vezes, haviam mantido conjunção carnal com o dito dos Anjos – inclusive em horário de expediente regular dos trabalhos forenses –, o qual sempre se mostrou conquistador inveterado, capaz de dizer palavras ao ouvido de uma mulher que a faziam impossibilitada de resistir, tratando-se, segundo elas, da notória coação irresistível, ou mesmo assédio sexual, a que aludem diversos textos legais e jurisprudência mansamente aceita. Ainda segundo ambas, àquela altura, já estavam, cada um a seu turno, apaixonadas pelo indigitado colega, pelo que requeriam exclusividade no local de trabalho, não consideradas as obrigações matrimoniais do servidor, que ambas reconheciam de direito da esposa legítima, conforme as cominações legais vigentes. A segunda, Marielisa de Souza Santos, arguida, confessou ter premeditado o encontro com a ex adversa à saída do toalete, com o intuito de dar por término a parceria da colega com o dito Francisco Garcia dos Anjos, tudo dentro dos ditames da ordem e da lei, o que não ocorreu, no entretanto, em virtude de ter sido acometida por fúria incontrolável, ao ver a colega meeira do seu amado sair, daquele recinto, deslumbrante nos trajes da sexta-feira promissora que se anunciava, motivo mais do que suficiente para despertar incontrolável ciúme, que ela própria desconhecia, tendo em vista que naquela mesma sexta-feira tinha compromisso de aniversário de afilhado dela e de seu marido, no aprazível bairro do Galo Branco, em São Gonçalo. Garantiu ela que, durante largo tempo, resistiu às investidas do colega, o qual, frequentemente, vinha soprar-lhe aos ouvidos elogios ao seu corpo fornido de carnes, a seus seios ainda empinados, apesar de mãe de filhos, e à sua pele de âmbar, elogios a que ela, por mais virtuosa que fosse, por fim sucumbiu. Por seu lado, Luzia da Silva Penteado, que a este Secretário sempre pareceu moça recatada, porém de muita beleza e sensualidade, garantiu que apenas reagiu na mesma medida da agressão, pelo que se justificou com a lei de Tabelião, digo, de Talião, antiga de muitos milênios, já que preconiza o dito “olho por olho, dente por dente”. Instada pelo Presidente do inquérito e inquiridor-mor, informou que há muito mantém com o servidor em tela minudências íntimas das mais variadas posições e integrações, pelo que se sentia pecadora inveterada, mais que a própria Madalena bíblica, tornando-se, doravante, com a publicidade deste caso, a vergonha de seu amado pai, pastor evangélico da Igreja Congregacional da Terceira Lâmina, localizada no Badu, em Niterói, talvez agora ameaçada de encerrar suas atividades diante de tais evidências. Asseverou ela, contudo, que resistira o máximo que pôde às investidas do colega que, amiúde, vinha-lhe propor saliências, vangloriando suas pernas, que julgava bem torneadas, e seu rosto, que afiançava ser feito de alabastro. Como rapaz nenhum da congregação que frequentava, em tempo algum, dissera-lhe minimamente palavras tão belas, acabou cedendo ao canto do boto tucuxi de nome Francisco Garcia dos Anjos. Depois de tudo apurado e tendo ouvido as partes e não tendo chegado esta douta Comissão de Inquérito a um veredicto sobre a culpabilidade de nenhum dos três envolvidos, tirante o fato ocorrido em suas dependências, determinou o Senhor Presidente da dita Comissão fosse aplicada aos ditos funcionários Francisco Garcia dos Anjos, Marielisa de Souza dos Santos e Luzia da Silva Penteado a pena de advertência escrita, a ser assentada em suas fichas funcionais, e o rogo de que suspendam a conjuminação carnal mantida entre eles durante o horário do expediente forense, excluídos quaisquer outros, já que esta Comissão não tem jurisdição em quartos de motéis, bancos de automóveis e beiras de estrada. Nada mais havendo a tratar, o Senhor Presidente determinou a lavratura da presente ata que vai por todos infra-assinada. Eu, Alcebíades Pereira dos Reis, secretário, lavrei o presente termo, que assino em público e raso. Dado e passado nesta cidade do Rio de Janeiro, Capital do Estado, aos vinte e cinco dias do mês de março do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil, novecentos e setenta e sete.

Imagem em seguresepuder.blogspot.com.

20 de junho de 2011

TARDE, MUITO TARDE!

Não vou viver lembrando teus encantos.
Tenho mais coisas a fazer na vida,
Como fazer a vida mais comprida,
Para que chegue até aos meus cem anos.

Se eu for atrás destes teus tais enganos
E enganar-me por toda a eternidade,
Possível veja, sem muito alarde,
Que esses foram tempos bem insanos.

Não quero, pois, a vida com tais danos,
Para que, velho, morra de saudade
Das coisas lindas que nós dois deixamos

De realizar, quando na jovem idade.
Nada vale chorar sobre tais planos.
Agora é tarde. Já é muito tarde!

Imagem em lemondedelily.over-blog.net.

19 de junho de 2011

PONTO FINAL

Um dia
Aparecerá um ponto final
No teu caminho
Dali para frente o ônibus não seguirá
O bonde e o trem não terão trilhos
A carroça estará com as rodas partidas
E o teu bilhete estará vencido
Vão faltar-te as pernas
O teu carrinho de rolimã da perdida infância
Estará sem as rodas
Até teu cavalinho de pau estará quebrado
Jogado num canto escuro da vida
E tu não terás passagem
O caminho estará bloqueado
Por uma barreira intransponível
Neste ponto tu me encontrarás
E nos juntaremos a todos os nossos semelhantes
Na grande certeza final:
Um dia seremos apenas memória
Uma reles e simples memória
(Isso se não houver uma amnésia geral!)
Imagem correntes.blogs.sapo.pt.

18 de junho de 2011

DUPLAS SERTANEJAS: MINHA CONTRIBUIÇÃO

Há pouco tive brilhante ideia para ganhar dinheiro, como disse aqui no blog: escrever um livro em cujo título estivesse a expressão a menina que. Volto a ter outra e gostaria de compartilhá-la também com vocês (É provável que eu fique rico antes do fim do mundo!). Quero, porém, de antemão, pedir que não a usem antes de mim, senão o autor não desfrutará de sua própria esperteza.
O troço consiste basicamente no seguinte. Como há, na atual conjunção astral, uma proliferação descontrolada de duplas sertanejas no Brasil - e não só no progressista estado de Goiás, grande produtor de galinhada com gueroba* e licor de pequi - e, pelo que se percebe, isto não terá fim tão cedo, vou registrar em cartório e no INPI, na Biblioteca Nacional e no ECAD, nomes aplicáveis a esses denodados artistas canoros do cenário nacional, de modo que, ao surgir uma nova parelha de cantantes em qualquer rincão deste país, é só arrendar um da  minha relação, que estará disponível por valor a ser combinado, para licença de uso, o qual estará atrelado à arrecadação da dupla.
Vejam como a realidade supera a
ficção (imagem em mais.uol.com.br).
Alguns deles contemplam duplas femininas e gays, duplas mistas quanto à orientação sexual, intelectual, alcoólica e outras vertentes, porque aqui não há qualquer tipo de preconceito. Trabalhamos de acordo com os interessados.
O uso do & ou do e é indiferente, ficando a critério do cliente, sem que com isso haja aumento na licença.
Esclareço que os nomes já estão adaptados à grafia e à forma, de acordo com o gosto dos fregueses.
Os nomes seguem algumas tradições inerentes ao caso e atendem às mais diversas vertentes:
1)      Sertanejo de raiz, com preocupação ecológica e cultural: Mata-burro e Pinguela; Caga-sebo e Vira-bosta; Rabeca Velha e Viola Nova; Erosão & Voçoroca; Precipício e Pirambeira; Barranco e Barranqueiro; Fueiro & Canzil; Mourão e Baldrame; Cumeeira & Platibanda; Cacimbinha & Poço Fundo; Forquilha e Encruzilhada; Vassoura e Tiririca ; Porteira & Cancela; Boi de Coice & Boi de Guia; Pé de Pau e Mato Fino; Toró e Garoa; Grota Funda & Cova Rasa; Saracura e Gaturamo; Bacuri & Bacurau; Taturana e Tanajura; Alazão & Pangaré; Lambari e Piabanha; Brabuleta e Mariposa; Carqueja & Berdoega; Corgo Seco & Cachoeira; Pinico e Pinote, Pirilampo & Cu-de-lume.
2)      Sertanejo antenado, com preocupação universalista: Caipira & Marciano; Jeteme & Lovisol; ET & Abduzido.
3)      Sertanejo reverente, com homenagem a celebridades: Istochurchiu e Aizenrau; Suasnega & Istuude; Maicojeca e Elvispresli, Bilionário & Zé Pobre.
4)      Sertanejo gaiato, com laivos de humorista: Pedro Só e Mal-acompanhado; Já Cheguei & Tou Saindo; Desafina e Desentoa; Tou Ganhando & Vou Gastar; Cadiquê e Sacumé; Oncotô & Oncovô; Podicrê e Num Me Diga; Cequissabe & Xacumigo; Podissê e Tá Difícil; Bem Pequeno e Bem Dotado; Crendospadre & Orapronobis; Cisprandi e Black Jack; Pancadão e Aluado; Tchê e Bah!; Baitolo e Gilete; Atirado & Reservado; Zé Ruela & Arrochado; Cuidadoso e Arriscado; Vacilão e Decidido.
5)      Sertanejo traumatizado com as dificuldades passadas, com foco na comida e na bebida: Galinhada & Revirado; Constipado e Sastifeito; Pinga Nova e Figo Veio; Tonel & Barrica; Meia Dose e Copo Cheio; Gole Certo & Pé Inchado; Batata e Baroa; Zé com Fome & Gororoba; Porpeta e Minestrone; Pipoco & Pipoca; Nestor & Neston.
6)      Sertanejo nascido nos grandes centros urbanos, mas com o pé no meio do mato: Transeunte e Circunstante; Usuário & Traficante; Enrustido e Assumido; Indultado e Albergado, Pinheiros & Tietê, Alemão e Borel.
7)      Sertanejo universitário, metido a intelectual:  Pesquisado & Ilustrado; Operário e Operado; Invasão & Latifúndio; Seu Foucault e Seu Deleuze, Wolfgang & Amadeus.
8)      Sertanejo romântico e poético, que gosta do jogo de palavras, das aliterações: Labareda & Lamparina; Tropeiro Apaixonado & Carreiro Jeitoso; Jeitoso e Arrumado; Antonti e Trasantonti; Dejaoje & Dejavi; Revertério & Ribeirinho; Ministro e Ministério; Mensalão e Mensalinho; Lasquento & Lascado; Lesinha e Lesado; Periguete e Perigosa; Ternurinha & Tremendona; Fidamãe & Fidazunha; Lascado & Lasqueira; Coqueiro e Cocada; Henriquim e Enricado; Chifrudo & Chifrado; Joiado & Belezura.

(*Jeito goiano de dizer guariroba.)

17 de junho de 2011

OLHO PELA JANELA...

olho pela janela e o horizonte se oblitera
se corrompe na parede mal caiada
lá longe é possível haver barcos sobre as águas
aviões nos ares gente nas calçadas
daqui de dentro no entanto não sai nada
nenhum mosquito nenhum choro nenhum lamento
tudo é estéril asséptico desinfeto
e a vida – passageira sob todos os aspectos –
está deitada triste sobre um berço esplêndido

e lá fora continua o desespero de todas as coisas
de todos os animais humanos
correndo atrás de suas insoluções eternas
mas aqui abstraídos os sons que inundam a sala
a paz ou qualquer outro sentimento parecido
vacila entre a cruz e a espada
oscila entre o achado e o perdido
e a vida – condição de certos organismos –
irrompe em nossos corpos como vampiro


Antônio Poteiro, Procissão, 1925.


16 de junho de 2011

"PAN AMÉRICA" NA VISÃO DE UM LEITOR MEDIANO

Imagem em livrariaresposta.com.br.
Terminei de ler, há cerca de um mês, o livro Pan América, de José Agripino de Paula (Editora Papagaio), em reedição atual, que adquiri na Livraria Cultura, em minha última visita a São Paulo. E, como prometi em outra oportunidade, está aqui a minha impressão de leitor.
Tal livro já havia sido citado, de forma um tanto difusa, na música Sampa (1978), de Caetano Veloso, conforme ficamos sabendo depois, acho que por informação do próprio compositor. Por isto, sempre esteve em minhas metas de leitura.
Consta, ainda, que foi objeto de teses acadêmicas e de culto de artistas e intelectuais, logo após seu lançamento em 1967.
Quero dizer-lhes que não foi sem uma grande dose de sacrifício que levei sua leitura a cabo, já que leituras de textos literários, em princípio, devem ser prazerosas, a não ser que sejamos críticos literários ou revisores de textos.
No entanto impus-me este encargo, a fim de justificar a expectativa que tinha, motivada pelo conhecimento da existência do livro, há muito fora de catálogo, e também pela devoção de Caetano Veloso, um dos meus compositores prediletos, por ele.
Para reforçar, ainda mais, este encasquestamento em levar a leitura até o fim, estava o fato de que, durante todo o tempo em que fui professor, Caetano e Sampa se misturavam a outros autores e obras, daqui, de Portugal e de outros países lusófonos, d'antanho e de hoje, na exemplificação do uso competente e criativo de nossa bela língua.
Assim não podia fazer cara de pastel diante de obra incensada por um dos meus ídolos.
No prefácio que fez para esta nova edição da obra de José Agripino de Paula, Caetano reitera sua admiração pelo caráter inovador e revolucionário do texto, afirmando que a literatura brasileira seria outra com ele e que nada tinha sido produzido até então que se lhe pudesse comparar. Para ele, seria antes e depois de Pan América. E não teria havido o Tropicalismo (1968) sem a leitura prévia desta obra.
Vejam que importância ele atribui ao livro!
Ora (e quando se diz ora é porque haverá discordância), infelizmente vou ter de discordar de Caetano.
Em primeiro lugar, a massa impressa apresentada pelo texto - sem parágrafos - foi introduzida pelo chamado roman nouveau francês (1952), que antecedeu um pouco o livro de de Paula e já era tema de estudos do meu curso de Letras, em Literatura Francesa, no final dos 60. Não era, assim, recurso tão revolucionário.
Em segundo lugar, a despeito de conter em sua narrativa, personagens comunistas, agentes de repressão e espionagem, exércitos, guerrilheiros, CIA, nazistas e fascistas, o personagem-narrador (o texto é todo em primeira pessoa) é desprovido de ideologia, assim como o texto em sua totalidade. Diria mesmo que também não há Ética nas ações e nos comportamentos dos personagens na história narrada, apesar de atos por eles praticados que, aos nossos olhos, possam ter um quê de reprovação, como casos de pedofilia. Não há constrangimentos do personagem narrador em descrever suas ações neste sentido.
A seu turno, a fabulação fantasiosa e inverossímil, mais caótica que as histórias em quadrinhos de Robert Crumb - que veem à mente tão logo se começa a leitura -, não apresenta lógica, coerência ou sintaxe narrativa, parecendo produto de uma viagem psicodélica, movida por não sei que tipo de droga. E termina porque acaba, sem um desfecho que justifique o tempo que se gastou a ler. Como se todo o texto fosse produto de anotações inconsúteis juntadas, algum tempo depois, na composição do livro.
A narrativa rompe, também, com a lógica espacial, uma vez que, de uma frase para outra, a ação se desloca abruptamente de Brasília para a selva sul-americana, e daí para Hollywood, levando alguns personagens, abandonando outros, aparentemente sem um critério que se justifique na narrativa, a não ser a estilística do caos. Em boa parte, não se sabe mesmo onde ocorre a ação.
Já os personagens - figuras, sobretudo, do cinema americano das décadas de 50 e 60, com destaque para Marilyn Monroe, fixação do narrador - não guardam verossimilhança com pessoas, uma vez que morrem e revivem de forma aleatória no curso da história. Bem como se agigantam, se encolhem, inflam como balões e explodem, na narrativa alucinada do personagem-narrador.
Na linguagem literária propriamente dita, aquela de que o personagem-narrador se utiliza para contar a história e que estrutura a narrativa, é talvez onde estejam os maiores problemas, segundo meu ponto de vista.
O texto se faz arrastado pelo uso mais que exagerado - diria, mesmo, abusivo - do pronome sujeito, numa imitação tosca, e não vernácula, da sintaxe da língua inglesa. Há assim uma profusão de eu. Também repetem-se enfadonhamente palavras e expressões, em frases contíguas, produzindo uma dicção infantilizada e pesada estilisticamente, o que torna a leitura arrastada e maçante.
O exagero no uso da coordenação, em detrimento da subordinação, trabalha para que o texto, como estrutura frasal, se mostre pobre e incipiente, tal qual ocorre com alunos aprendendo a fazer redações.
Querer que tal tipo de frase seja inovadora é um equívoco. Sua estrutura está muito mais próxima à linguagem infantil do que da fala de um adulto razoavelmente desenvolto.
É como pretender, relativamente ao texto da música popular brasileira, descobrir avanços no texto do rap, do funk e do hip-hop, ou mesmo do chamado pagode romântico, diante da excelência poética que atingimos da década de 60 do século XX para cá. Ao contrário, penso mesmo que a poesia, ou letra, que acompanha estas novas manifestações se constitui numa regressão, numa involução, se comparada a qualquer texto produzido pela MPB.
Por todos e apenas esses motivos, o livro de José Agripino de Paula não faz falta a nenhum leitor ou a nenhuma biblioteca. Não vi, não senti e não vislumbrei em sua leitura nada do que Caetano disse, ou que justificasse a pretensa idolatria que despertou, quando do seu lançamento.
Desgraçadamente isto só vem demonstrar a distância que há entre as cabeças de ídolo e de fã.

15 de junho de 2011

HIPÓTESES


V. Kandkinsky (1866-1944). Improvisação.


se beijar a tua boca serei cuitelo
se morder o teu pescoço serei vampiro
se sugar os teus seios serei bezerro
se cheirar a tua pele serei perdigueiro
se lamber a tua redoma serei felino
se comer todo o teu corpo serei abutre

se não parar de delirar serei maluco

14 de junho de 2011

CORPOEMA


Escultura por Paulo Massena, em pousadadoescultor.com.

algum poema se constrói ao longo do corpo
com o mesmo suor
                                o mesmo cansaço
assim como a mesma emoção repetida
e se um se contorce
o outro retrocede e eriça
e se um se expande
 o outro se aglutina e ferve
: ambos matéria do mesmo existir

e o suor que mina dos poros
a língua que o sorve pele afora
os pelos lambidos
as mãos crispadas
os músculos retraídos
no desconforto macio de dois corpos ágeis
                                             a se acoplarem
: a solidão dos que dizem com os gestos
o poema-momento que o tempo elide