31 de março de 2012

NO MUNDO DE 2030

Estamos em 2030. E o mundo anda muito estranho.
O biscoito verde soylent green, criado no filme de mesmo nome¹, alimenta a maioria esmagadora da população, há mais de uma década. Sua composição, feita basicamente de carne humana, põe em prática o princípio man eats man², de séculos atrás, em níveis gastronômico e industrial. No entanto, ninguém se considera canibal, antropófago.
Ao mesmo tempo, com a expansão galopante das comunidades homossexuais de todos os matizes - as variáveis ocupam todo o abecedário -, os heterossexuais dos dois sexos, agora identificados apenas como positivo simples (P) e negativo simples (N), tornaram-se minoria e têm de suportar calados todo tipo de discriminação.
Envergonhados, os seres humanos que ainda nascem com esta marca sexual residual procuram esconder da maioria da população sua condição desviante do padrão.
Na formação das novas famílias, duas recentes denominações de papéis sexuais e familiares detêm o monopólio: as pães e os mãis.
Os primeiros, as pães, aqueles que até o fim do século XX eram conhecidos com homossexuais masculinos, constituem agora, de acordo com a nova nomenclatura, famílias de positivoˉ + positivoˉ (ambos expoente negativo: Pˉ).
Os segundos, os mãis, conhecidos até 2000 como homossexuais femininos, formam famílias de negativo† + negativo† (ambos expoente positivo: N†).
A classificação positivo e negativo refere-se ao tipo de acabamento externo da genitália humana: para fora ou para dentro, respectivamente. O expoente, como nas fórmulas matemáticas, refere-se à psique ou, antes, ao comportamento sexual.
Nestas condições, o novo ser humano, gerado por fertilização in vitro, que nasça com o padrão desviante positivo simples (isto é, sem expoente: P), antigamente conhecido tão somente como homem macho do saco roxo, passa a viver em ambiente desfavorável e é levado, pelas circunstâncias, a esconder tal característica.
É o que se dá, por exemplo, com Lexys Z4PY317, filo alpha 4, produzido num laboratório genético do bairro de Aricanduva, na zona leste de São Paulo, conforme consta da sua certidão de nascimento (pelo menos, este documento mantém o nome original).
Cedo ainda, com cerca de cinco anos, Lexys descobriu, um tanto constrangido, que se sentia atraído por seres de padrão negativo simples (N), que representam parcela ínfima da população e outrora eram conhecidos singelamente como mulheres fêmeas da perereca rosa. Tal condição, agora nos seus vinte e cinco anos, Lexys teve de camuflar, sob o manto de um casamento tradicional arranjado de padrão positivoˉ + positivoˉ, a fim de que não escandalizasse suas pães, Astolfo e Adolfo, homos já de certa tradição e prestígio social.
É claro que tal união não prosperou, porque não houve, em princípio, a presumida predisposição para adoção de filhos, como é a praxe atual. Lexys não demonstrava interesse por Axys, que estava constantemente a reclamar, querendo discutir a relação (prática de antigos casais héteros que ainda persistia, apesar dos esforços das autoridades psicossanitárias para sua extinção).
Por este motivo, a relação foi-se deteriorando, até o momento em que Lexys, não suportando mais os gritos mais íntimos do seu ser e diante de suas pães e das pães de Axys, Tenório e Terêncio, saiu do armário e declarou sua condição de positivo simples, com todas as letras. E bradou em alto e bom som:
- Eu sou positivo simples! Eu sou aquilo que vocês antigamente chamavam de bofe, macho do saco roxo! Eu gosto é de negativo simples! Eu gosto é de perseguida, perereca, vagina, seja lá o nome que a coisa tenha!
Aquela linguagem arcaica e chula de Lexys abalou seus familiares, que não tiveram alternativa a não ser expulsá-lo de casa, a fim de que o opróbrio social não maculasse o prestígio de que Astolfo e Adolfo ainda desfrutam.
No momento, Lexys retirou-se para uma comunidade alternativa de pessoas com as mesmas características suas, localizada à margem da Represa de Três Marias (felizmente o nome também foi mantido, apesar de violentos protestos no início da década), onde cada morador, como em Fahrenheit 451³, se incumbe de decorar um romance fescenino, uma poesia erótica, um conto burlesco, uma cantiga de escárnio e maldizer antigos, cujos protagonistas sejam tão somente um homem macho do saco roxo e uma mulher fêmea da perereca rosa.

Cena de Fahrenheint 451, filme de François Truffaut. Em primeiro plano,
o ator Oskar Werner; atrás, Cyril Cusak (em pt.wikipedia.org).
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¹ No mundo de 2020 (Soylent green, no original), filme de ficção científica norte-americano de 1973, dirigido por Richard Fleischer.
² L'homme mange l'homme (fr); L'uomo mangia uomo (it); El hombre come el hombre (es); Man isst der Mensch (al); Homo hominem manducat (lat) Homem come homem (pt-saudações). (Tenho a impressão de que este blog é lido nos mais estranhos recônditos da Terra!)
³ Filme de ficção científica de François Truffaut, de 1966, baseado no romance homônimo de Ray Bradbury, publicado inicialmente em 1953.

30 de março de 2012

SETEMBRO

Setembro está batendo à porta dos meus dias
Com promessas de flores perfumosas
E paisagens de românticos idílios
Eu porém que de romântico ando vazio
Dispenso essas promessas venturosas
E me contento apenas com mais uns dias de frio
Para que possa com os amigos de estio
Sorver ainda algumas taças de vinho
Imagem em papodebar.com.

29 de março de 2012

SABE, CIDADÃO?

sabe, cidadão, que o seu sorriso não me engana
que a sua pose de bacana não me ilude
que o seu terno de tropical inglês não me encanta
que a sua conta bancária é quase um crime
que o seu carro importado e o seu iate
são despropósito e disparate
enquanto há outro cidadão aí alhures?

sabe, cidadão, que o seu sorriso é feio desdentado
que a sua pose de bandido me confunde
que o seu trapo pelo corpo é quase nada
que o seu estômago vive de futuro
que o seu barraco o vento leva com a chuva
que os seus pirralhos não veem o fim do túnel
enquanto há outro cidadão aí abutre?


O_ALMO_1.JPG
Júlio Pomar, O almoço do trolha, 1950 (em enciclopedia.com.pt).
está sabendo, cidadão?

28 de março de 2012

A MORTE DO DESBOCADO


Salvador Dali, O sono, 1937 (em artedoconhecimento.blogspot.com).

Era uma alma insubmissa. Como tal, morreu desfeiteando os circunstantes.
Do leito de morte – a cama de um hospital quase asséptica –, resolveu partir desta com ofensas diversas. Ao médico que o atendia, mandou que tomasse naquele lugar que todos sabem muito bem onde é. O padre, chamado às pressas pela religiosa mulher, a fim de desentortar sua vida, destinou ao inferno mais sulfuroso, com todas as letras. A enfermeira, já um tanto entrada em anos, em vias de se aposentar, e sua companhia no momento final, mandou ir para a casa do... (Bem, todos sabem para onde se mandam os desafetos!). E, por fim, pediu que lhe chamassem a mulher:
- Porra, chamem a Alzira, lá no corredor, que preciso falar com ela!
Talvez fosse a última frase a sair daquela boca suja. A derradeira ofensa.
O médico resolveu fingir que o atendia, pois não desejava que aquela senhora, já bastante abalada, pudesse ser enviada a um lugar de retorno impossível. E, também, aproveitou para sair de perto de um paciente que não se conformava com nada. Era um moribundo revoltado e inconveniente.
Pois eu lhe digo, caro leitor, que a pior forma de morrer é perdendo a vida. Não há outra que se lhe ultrapasse em fatalidade. Quando se perde a vida, a morte é um fato consumado. De se lavrar atestado de óbito, com selo e firma reconhecida, em qualquer cartoriozinho mal instalado e embaixo de correição devastadora.
Imagine, então, um homem que sempre viveu de impropérios, de derramamento de bílis, de má vontade com tudo e com todos, chegar ao termo da caminhada, como se costuma dizer, achando que os sessenta e nove anos foram uma miséria. Poderia ter sido muito mais, segundo seu juízo, embora ele mesmo não tivesse feito nada em favor disto. Aliás, muito pelo contrário!
Quando jovem, para se ter uma ideia, foi morar na pensão de dona Clotilde, em Niterói. Lá ganhou o apelido de Paulo Porra, porque tudo que dizia era pontuado por esta palavra. Era como se fosse uma muleta vocabular para sua frase.
Certa feita, o colega Michel foi apresentá-lo a um amigo que vinha de Bom Jesus, a quem já tinha dito o apelido de Paulo, e fingiu esquecer seu nome:
- Zé Luís, este aqui é... é... é...
- Paulo, porra! – disse aborrecido o apresentado.
- Eu não disse que o nome dele é Paulo Porra! – falou às gargalhadas Michel.
- Porra, porra! – retrucou irritado e saiu sem cumprimentar José Luís.
Então, no exato momento em que se apagava a bateria de Paulo, naquele leito de hospital cercado de vitupérios, Alzira estava na capela rezando, não para que ele sobrevivesse – seria pedir demais e, talvez, o não desejado –, mas para que pudesse ser atendido com o mínimo de benevolência, lá do outro lado, na hora da prestação de contas. E aproveitou para pedir aos santos de sua mais alta estima e devoção que apagassem alguns registros desabonadores, porventura, lavrados no Livro da Vida, em função desse comportamento pornofônico e corrosivo como ácido muriático.
E, assim que sua alma desencarnou, exclamou já no breu do éter, entrando no oco da eternidade:
- Merda, morri! Porra, só me faltava essa!
E foi realmente o último ato de uma vida recheada de mau humor e desbocamento.

27 de março de 2012

POEMA DO FROUXO AMOR Nº 2

trago comigo as lembranças esmaecidas de um tempo nulo
teu corpo comigo não vagueia
pelo chão da casa acarpetada
tua bronquite alérgica
exige espaços amplos
janelas abertas
e se possível um esterilizador de ar
recentemente lançado no mercado brasileiro

Foto de Nociveglia (Cristina), em flickr.com.

26 de março de 2012

NOS DIAS CLAROS DE VERÃO

nos dias claros de verão
sobre os corpos das mulheres seminuas
passeio meu olhar guloso

tenho muita necessidade desse prazer de ocasião
porque sei que o inverno não é lá essas coisas
que as agências de turismo andam apregoando nos jornais

tenho achado todas as mulheres bonitas
sem que o sol me tenha derretido os miolos

é só um pouco de boa vontade ou estou ficando velho?

sobretudo as mulheres novas
essas gazelas de olhares espantados
ancas arrebitadas
pernas torneadas no dourado dos pelos
seios furando as blusas de seda
sobretudo elas
iludem esse tempo de sentenças pesadas
e abortadas esperanças

por isso ando amando todas as mulheres das ruas
sobretudo as novas bonitas e apetitosas

Albert Gleizes (1881-1953), Les baigneuses (em blog.travelpod.com).

25 de março de 2012

UMA CARTA ANTIGA


Querida,
Escrevo-lhe para dar as minhas e saber das suas. Aqui tudo bem, graças a Deus. E aí?
Como você bem sabe, o João ainda não marcou a data do casamento, embora eu já tenha o enxoval quase completo, a casa já em vista e os padrinhos apalavrados. Meu pai é que fica me perturbando, querendo saber se o João resolveu ou não se casar. Até parece que sou uma moça encalhada. Deus me livre: pode ser um mau agouro.
Você se lembra da dona Bicota, aquela que vive de xale negro por tudo que é lugar? Pois é! Dona Bicota é que vai fazer o meu vestido de noiva. Ela costura muito bem. Inclusive fez o vestido da filha do prefeito e o da filha de dona Carmita, mulher do seu Hamilton da Volks. Os vestidos delas, você precisava ver, ficaram lindos, umas graças!
Mas, não sabe o João? Depois que aconteceu aquele negócio que eu te contei nas férias, ele anda meio esquisito, meio ressabiado, parece indeciso. Será que ele não quer mais se casar comigo? Ele que não seja bobo. Sou capaz de aprontar o maior escândalo! Depois, também foi ele que veio com conversa: minha isso, minha aquilo, prova disso, prova daquilo. Você sabe, né? A carne é fraca. Ainda bem que não teve consequências “grávidas” (gostou?).  Mas se ele não se decidir até o fim do ano, ponho ele contra a parede e ameaço falar com meu pai. Você sabe como é o papai pra essas coisas de honra da família, né? Um horror!
Mudando de assunto. Você se lembra do Eduardo, filho do seu Inácio da Fazenda Boa Fé? Não é que ele anda querendo se engraçar comigo? E ele sabe que estou noiva, já compromissada, de aliança grossa e tudo. Sei não, mas acho ele meio entrão. Mas que é um cara bonito, isso ele é! E João que tome cuidado, senão... Bem, deixa pra lá.
Uma outra coisa: e como está o seu namoro com aquele médico? Tá firme? Cuidado, que médico só quer saber de bolinar a gente e depois larga pra lá. Olha o que aconteceu com a prima Carminha!
Bem, vou terminar porque já está tarde (quase meia-noite) e amanhã tenho que acordar cedo para ir ver os móveis com o João. É... tou dando em cima, senão já viu, né?
Um beijão pra você e me escreva, tá?
Da amiga...
Imagem em oseaspontes.blogspot.com.

24 de março de 2012

VENTO MORNO DE OUTONO


Sopra na varanda um vento morno
Vindo do morro que fica logo aqui em frente
E o vento vem
É quase um forno
Que ainda existe mesmo sendo o despertar do outono

E vem vindo o vento

E em torno desse ponto em que me encontro
É um transtorno suportar o vento
Com seu sopro quente
Seu torpor insano

Parece até que o verão resiste
Malgrado todo meu contentamento
De achar que os dias de tal vento horrendo
Tivessem fim naquele tempo ardente

Vento do outono, ilustração de Tamara Kulikova, em pt.dreamstime.com.


23 de março de 2012

O JEITO COMO SE VAI


Eu resisti a quase tudo
A todos os amores inconclusos
Inominados
Aos sonhos frustros
Irrealizados
Que eu sonhava mesmo acordado
Com a insânia dos que sonham sempre
Refiz os planos a cada caminhada
Mesmo sabendo que qualquer chegada
- Porta lacrada? -
Por mais precisa
Por mais que pretendida
Talvez não seja o que valha a vida
Senão o jeito como se vai na estrada

Cena final de Tempos modernos, filme de Charlie Chaplin. Na imagem,
o ator e diretor, na personagem de Carlitos, acompanhado da atriz
Paulette Goddard (em cinevintage.wordpress.com).

22 de março de 2012

PENDURANDO AS CHUTEIRAS

Lá por volta do final da década de 50 do século passado, com meus doze-treze anos, tive um acesso de lucidez e resolvi que não seria jogador de futebol.

No entanto, tal decisão não foi tomada de livre e espontânea vontade, mas antes sugerida - ou determinada - pela observação de alguns dados.
Por essa época, havia na vila um bando de garotos que participava das equipes mirins do Liberdade Esporte Clube. Formávamos as equipes infantil e juvenil do clube. Nosso técnico era o Zé Elias, meio-campista da equipe principal, e não muito mais velho do que eu. Imagino que ele tivesse por volta de dezoito-dezenove anos, se tanto.

O critério, todavia, para estar em um ou em outro grupo não era a idade, como seria de se supor, senão a habilidade no trato com a redonda.
Assim, alguns moleques mais velhos que seus irmãos eram escalados como infantis. Era o meu caso. Mas, também, o de meus primos Délbio e Celinho. Nossos irmãos Guth, Zé Luís e Fernando, respectivamente, jogavam muito melhor que nós. Aliás, incomparavelmente melhor!

Deste modo, Délbio, Celinho e eu, que já começávamos a ter buço, pelos nas pernas e em outros lugares mais e a entrar na muda vocal, éramos dos infantis. Zé Luís, Fernando e Guth, ainda pivetinhos, estraçalhavam a bola na equipe dos juvenis. Era uma total inversão da lógica da vida, ainda que não fosse a do nobre esporte bretão, que se faz por aqueles que tratam a bola por você, com intimidade, com carinho. Era de uma total insensatez lúcida.
Particularmente comecei treinando como ponta esquerda – posição de meu pai, em seu tempo de grande jogador –, pela habilidade que sempre tive com este lado do corpo, embora não seja canhoto, e pela grande velocidade que desenvolvia. Imaginava Zé Elias que eu seria capaz de chegar à linha de fundo, pela esquerda, e de lá fazer os cruzamentos necessários ao centroavante.

Aliada a essas duas características, também tinha um chute muito forte, no meio daquele bando de guris. Tanto que, durante um treino, tentando fazer um cruzamento, chutei a bola que, forte, bateu na cabeça de um garoto bem menor, que foi a nocaute. Ficamos todos preocupados na hora, porque o menino ficou tonto.
Com o passar dos treinamentos, fui deslocado para a lateral esquerda, a fim de não colocar em risco a integridade física do meu pequeno oponente. Nessas ocasiões, invariavelmente o time do meu irmão e dos meus primos menores vencia. Chegava a ser uma espécie de carma. Eu, Délbio e Celinho, já galalaus, sempre perdíamos para Guth, Zé Luís e Fernando. Além deles, ainda havia outros amigos nossos mais novos, exímios com a bola nos pés: Conceli e Dalson, por exemplo.



Cândido Portinari, Futebol, 1935 (em portinari.org.br).

Observe, então, meu caro leitor, que eu já percebia tudo isso àquela altura da vida desportiva.

A isto acresceu-se outro fato.

Numa das primeiras partidas de que participei, na posição de lateral esquerdo, meu tio-avô Nalim, pai do Celinho e do Fernando, benemérito do Clube e torcedor fanático, encostado à cerca interna, ao lado do campo, reclamava de mim e pedia ao técnico, com veemência, minha substituição. Alegava que eu não estava jogando bem, não apoiava o ataque, não sabia combater. Essas coisas que traumatizam qualquer pretendente a Nilton Santos.
Achei aquilo muito ruim e reclamei com minha mãe, sua sobrinha. Tio Nalim era irmão de meu avô materno, o Papai Juquinha. Minha mãe me aconselhou a não ligar para ele, que, inclusive, dava chutes na cerca interna, numa reação sinestésica, ao assistir às partidas do Liberdade. Ele mesmo fora um grande jogador de futebol, quando jovem.

Porém o fato que determinou, em definitivo, o abandono de todas as pretensões de me tornar um craque ocorreu durante uma partida na Usina Santa Isabel, pertencente ao distrito de Carabuçu.
Nossas valorosas equipes viajaram até a Usina, que também mantinha times principais no campeonato bonjesuense de futebol, num ensolarado domingo de manhã, para uma aguerrida rodada dupla: infantis e juvenis.

Entrei todo garboso em campo, para o jogo de fundo, entre os infantis. Por essa altura da vida, os pelos de minha perna já estavam salientemente negros, o buço borrava meu lábio superior e meu tamanho era praticamente o que tenho hoje (Espichei muito até os quatorze anos, mais ou menos, e estacionei, para não fazer inveja aos meus amigos.). Várias espinhas começavam também a brotar em minha cara.
Pois foi só eu dar a primeira espanada no ponta-direita diminuto que se engraçava do meu lado, para ouvir um torcedor, bem próximo à lateral esquerda, gritar ofensa que até hoje reverbera em meus ouvidos:

- Tira essa mãe de família de campo!
O fdp disse exatamente isto. Ele me ofendeu na raiz da nascença, denunciando minha idade, opondo reparos à masculinidade que aflorava em mim e, pior de tudo, fazendo um juízo medonho da minha habilidade com a pelota.

Voltei para casa desconsolado e, mais uma vez, fui chorar as mágoas com minha mãe.
E abortei, a partir dali, uma carreira mal começada, por absoluta falta de intimidade com a bola. Eu a tratava por Vossa Excelência. E senti que jamais seria um craque.

Por isso é que, ainda mais, me aprofundei nos estudos. Na escola, eu era cdf!

21 de março de 2012

OUTONO

Imagem em portaldepaulinia.com.br.



Com sono
Durmo um pouco mais nas manhãs suaves de outono
Diferentemente do verão
Quando a cama arde
Não tanto mais pelas coisas imprevistas em tal idade
Mas pelo calcinar do sol que entra pelas frestas.
Agora não
A luz que penetra é mais amena
Inclinada
Como um dardo luminoso arremessado
Ou como o lânguido olhar de uma morena.
E se não me engano
A tarde do primeiro dia
Da nova estação que mal começa
Anuncia que esta mesma festa
Se repete prazerosa a cada estação do ano.

20 de março de 2012

POEMA DO FROUXO AMOR Nº 1

deixei sobre a cama o travesseiro molhado de suor
nossas roupas comuns espalhadas pelo chão
qual estrelas de ovos fritos
no escuro céu da frigideira encardida
na xícara de café tardio
a borra das horas que perdemos
mutuamente

a porta de saída não se tranca e posso voltar

Imagem em overmundo.com.br.

19 de março de 2012

ANATOMIA ESTETICAMENTE PATOLÓGICA

A anatomia humana vem sendo estudada desde os homens da caverna, que cedo aprenderam o melhor lugar para arriar o tacape no desafeto: a cabeça.
Daí para cá, foi um sem número de estudos que, passando pelo conhecimento de zagueiros cascas-grossas¹ das canelas de atacantes adversários, mais e mais, culminaram hoje, por exemplo, com as intervenções cirúrgicas do Dr. Hollywood², que estão aí para não me deixar mentir.
Neste processo evolutivo do conhecimento do corpo humano, o que ficou claro é que, quanto mais se o conhece, menos as mulheres gostam do seu próprio, e tocam a fazer remodelagens no que, em princípio, está bem acabado e dentro dos conformes. Nesta esteira, há alguns homens, inclusive, que também assim agem e chegam ao cúmulo de extirparem peças que lhes foram destinadas pela natureza, a fim de que fiquem mais parecidos com o sexo oposto, suprimindo, destarte, a oposição. Mais ou menos por aí.
Isto, assim, comprova, pelo menos perfunctoriamente, que a anatomia feminina é mais adequada, mais agradável, mais completa, ainda que lhe fique faltando o apêndice que o gênero masculino traz dependurado. O que, na verdade, é compensado, com maior ganho estético, pelas mamas colocadas na parte superior frontal do tronco da mulher, permitindo a ela um equilíbrio melhor com a calipígia adiposidade inferoposterior.
Tal composição harmoniosa do corpo feminino acabou por desenvolver uma raça de ser humano - o brasileiro - e sua característica apreciação da anatomia da mulher: olha-a de frente e, ao passar, volta a cabeça, num movimento já previsto fisiologicamente para o pescoço humano, para também desfrutar do que está atrás³.
Como a natureza também funciona na base da ação e da reação, quanto mais o brasileiro passou a admirar verso e anverso, mais, na fêmea da raça, a natureza deu de aprimorar tais apetrechos da sua - dela - constituição anatômica. De modo que chegou ao espanto de acumular tanta adiposidade em tal região glútea, que produziu aqui mulheres melancias, dentre outras mais.
No entanto, a chamada compleição física do exemplar macho da espécie humana – vamos combinar – é meio esquisita. Tanto que fez o grande Darcy Ribeiro, que passou parte da vida entre os índios brasileiros, a afirmar categoricamente que uma das grandes invenções da civilização humana havia sido a roupa, porque, segundo ele, "homem pelado é uma coisa medonha de feio"⁴. Com o que sempre concordei, não fosse ele o intelectual que era!
Agora, dentro dessa feiura generalizada, há algumas coisas a destacar no homem, em comparação à mulher.
Em primeiro lugar, a virilha de homem! Ô coisa mais feia!  Dá até nojo só em escrever! Aliás, nem sei por que estou escrevendo isto! Vá lá que seja para o meu argumento. Mas a da mulher!... Como é bonita! Raspada ou não, e até com brotoeja ou cabelinho inflamado. E, depois, a localização dela é estratégica, quase mortal! A do homem... sem comentários! Vou passar para outro tópico, pois estou tendo engulhos.
Outra coisa também feia de enojar: pé de homem. Principalmente se o cara se mete a peladeiro de fim de semana, e estropia as unhas, e desenvolve joanetes, calos, esporões. Aí, não há pedicuro que cure, com perdão do trocadilho. E quando, além disso, pelo uso constante daquele velho tênis ensebado, aparecem as micoses, as frieiras, os pés-de-atleta e, para culminar o horror, o chulé fétido, que polui o ambiente, então se torna insuportável. É melhor passar a outro tópico.
O cangote do homem também é horrível. Só serve para duas coisas: ou levar pescoção, quando seu proprietário se mete a besta com uns e outros; ou levar canga, como boi, quando sobre sua cabeça já nasceram cornos. E digo isto tendo na mente o cangote de Mike Tyson, talvez o mais horroroso que a natureza já produziu.
No entanto (percebam que até troquei de parágrafo), o cangote de uma mulher!... Pode haver coisa mais catita, mais suave, mais cheirosinha? E até mesmo quando está marejadinho de suor! É uma das partes da anatomia feminil mais venerada pelo povo nordestino. Tenho a impressão de que não haja um nordestino que, desde a pia batismal, não tenha sonhado em dar um cheiro num cangote, nem que seja a última coisa a se fazer na vida. Penso mesmo que, depois de rapadura com farinha, o que mais agrada a nordestino seja o cangote de uma princesa sertaneja⁵.
Contudo, numa coisa os dois se igualam: no cotovelo. É a coisa mais sem graça da anatomia humana. Cotovelo não tem o mínimo apelo erótico; é aparentado do joelho de avestruz, pela conformação; é enrugado como sharpei, aquele cão chinês; e tem a sensibilidade de um carrasco nazista. Nos homens, serve apenas para dar cotoveladas no jogador adversário. Nas mulheres, para sustentá-las à janela, quando estão vendo a vida passar, como a Carolina do Chico⁶. Se alguém lhe esbarra o cotovelo, sem que o veja, você ficará sem saber se seu proprietário é homem ou mulher. Então, além de feio, não tem a mínima graça.
Para não me alongar, vou destacar outra parte da anatomia humana extremamente feia do ponto de vista estético, mas que só existe em função da roupa: o tal cofrinho, aquela partezinha inicial da fenda das nádegas. Mesmo em mulher bonita, o cofrinho dói aos olhos. Em borracheiro gordo, ao se abaixar para consertar o pneu furado do seu carro, então, é de lascar, provocar vômitos!
No caso da mulher bonita, é preferível vê-la nua a ver seu cofrinho. Cofrinho eu dispenso. Simplesmente não olho.
Fico por aqui com estas achegas aos estudos de anatomia humana. Espero ter colaborado.

O tal cofrinho (em otiskeenerror.wordpress.com).
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1. Sirva de exemplo Júnior Baiano. Aliás, um mau exemplo!
2. Aquele mesmo cujo nome omito aqui para não ser processado.
3. Millôr indagou, certa vez, que “se Deus fosse contra a paquera, por que teria feito o pescoço com tal mobilidade?”.
4. As palavras podem não ser exatamente essas, mas o pensamento é este mesmo, e já não me lembro se está  em seu livro de memórias (Confissões, Cia. das Letras, 1997), ou se o vi em alguma entrevista.
5. Aqui me lembrei de duas músicas: 1ª: O cheiro da Carolina, de Luiz Gonzaga; 2ª: Princesa sertaneja, de Gereba e Patinhas, gravada no elepê do grupo baiano Bendegó, de mesmo título, de 1970.
6. Já aqui cito expressamente a música de Chico Buarque de Holanda, Carolina, de 1967.

18 de março de 2012

NÃO VÊS QUE ESTOU EXAUSTO

não vês que estou exausto e continuas a caminhada
ao teu lado minha amiga o tempo é nada
e a marcha sem atropelos
embora a respiração exale tufos de fumaça
e o coração descompassado se esboroe
ao teu lado não há segredos
e no porão dos sentimentos resguardados
imagino-me girando a chave do teu corpo
este templo erguido sobre os sonhos

Sergey Marshenikov, pintor russo, óleo sobre tela (luamarinha.blogspot.com)

16 de março de 2012

A MÃO QUE VIBRA O FACÃO

No princípio, o casamento seguia por uma alameda de chão batido, cercado por canteiros de perfumosas flores silvestres, sob um céu sem nuvens. Um tempo depois, o caminho se estreitou em trilha, em que apareceram cascalhos, pedregulhos e uma que outra poça de lama, com tufos de vassoura e capim guiné à margem, e nuvens escuras no horizonte. Agora, isto já há alguns anos, com tempestades com hora marcada no finzinho da tarde, começo da noite, a trilha se fechou numa picada de mata intrincada, cipoal medonho, de vencimento só possível a poder de facão de mateiro.
Pois foi o que fez!
Sem pensar nos filhos e nos netos, pegou o facão de mato do marido, guardado em cima do guarda-comida na cozinha, e retalhou o miserável, enquanto ele dormia como um pudim de cachaça, espalhado pela cama.
E ficaram espalhados por lá os pedaços do outro. Impiedosamente. O colchão virara uma plasta de sangue, num espetáculo mais pavoroso do que quando matava porcos.
Imagem em clientes.netvisao.pt.
Ela jogou o facão sobre aquele monte de retalhos humanos, lavou suas mãos com a água fresca da cacimba que ficava nos fundos da casa. A roldana que fazia o balde descer e subir ainda tocou um canto meio chorado em suas engrenagens gastas, incapaz, no entanto, de a fazer sentir remorsos.
E se arrumou calmamente para sair.
Fez a mala. Uma velha mala de papelão reforçado, sustentada por tiras de couro que terminavam em alça, com cantoneiras de metal já enferrujadas, fixadas com arrebites. Não havia muitas coisas a levar. Apenas algumas peças de roupa, um vidro de extrato barato que ganhara de um dos filhos na última visita que ele lhe fizera, há coisa de uns três meses, e o pente de dentes largos, com que desembaraçava seus cabelos crespos.
Foi para a estrada esperar o auto – como na vila chamavam o ônibus – e seguiu viagem, de baldeação em baldeação, em direção a Resplendor, onde morava uma irmã um pouco mais nova.
Não foi difícil ser encontrada pela polícia, tão logo os vizinhos perceberam que, por três dias, não saía mais fumaça da chaminé da casa simples, um pouco distante, no meio de uma plantação de milho ainda incipiente, onde o casal quase que se escondia dos outros.
E o deslinde começou quando Nicanor resolveu ir até a casa do amigo Isaías, para assuntar o motivo do sossego. Assustou-se com a cena e o fedor que já se anunciava bem antes de entrar.
O quarto onde os retalhos de Isaías fediam estava com a porta encostada, e Nicanor teve um gesto brusco de fechar os olhos e cobrir o nariz com sua mãozona de agricultor miúdo, habituado ele mesmo à dureza de tratar a terra difícil. Voltou a abrir a porta, que deixara bater pelo balanço das dobradiças, para se certificar de que era realmente seu velho amigo Isaías das conversas animadas, do carteado, das lapadas de pinga durante os fins de semana, agora coberto por moscas varejeiras.
Apavorado correu até sua casa, para comunicar à mulher o que vira, arriou a mula e foi para a vila, atrás da autoridade policial.
Como sempre, sem nada a fazer, o subdelegado jogava uma partida de sinuca no bar do Ébio e gostou de saber da novidade, que daria a ele alguns dias de trabalho, para elucidar o crime, como gostava de dizer, leitor inveterado que era das peripécias de Sherlock Holmes e seu fiel escudeiro Dr. Watson. Ele também tinha seu parceiro nessas empreitadas: o cabo Fala-fino, alcunha maledicente, mas que dava bem a ideia de como o Cabo Antônio Paixão falava. Apelido, aliás, que não lhe era dito na cara, pelo risco de se levar um tiro pelas platibandas.
Os dois partiram a cavalo, em companhia do Nicanor.
O crime tinha ocorrido para os lados das terras da família Romualdo, cheia de gente, sobretudo homens, que falavam grosso, cultivavam bigode largo, lustrado a poder de Loção Pindorama do Brasil, e gostavam de andar de palito de dente no canto da boca, a cabeça coberta por chapéu de feltro amarronzado. Gestos e hábitos que pareciam marcas registradas dos Romualdo.
Nicanor e Isaías eram vizinhos dessa gente de trato difícil, cheia de quizílias, mas viviam na paz, porquanto suas terras fossem bem menores, de não fazer frente à atividade pecuária leiteira daqueles uns.
Quando, enfim, chegaram à casa de Isaías, os homens da lei já adentraram o recinto com o lenço amarrado por cima do nariz, em parecença de antigos bandidos dos gibis em preto e branco que a meninada lia na farmácia do Zé Resende.
Ivo Pereira, esse era o nome do subdelegado, resolveu enterrar ali mesmo o que sobrara do desgraçado e voltou à vila. Lá redigiu um relatório circunstanciado, na primeira pessoa do plural – o tal plural majestático –, como convinha ao caso, e o assinou juntamente com o cabo Fala-fino, a fim de que não houvesse contestação ao enterro que promovera ao arrepio da lei, segundo suas palavras, “em função do adiantado estado de putrefação em que se encontrava o de cujus”. Encaminhou-o ao delegado da cidade, indicando a autora, para quem solicitava o indiciamento pela barbaridade cometida.
Ofício vai, ofício vem, a polícia do estado de Minas Gerais providenciou a captura de dona Isolina Feitosa da Assumpção, viúva e assassina de Isaías Antunes dos Anjos, e a enviou, sob escolta, para que as autoridades de Bom Jesus dessem seguimento ao processo crime.
Quando a reluzente Rural Willis com a placa MG parou diante da delegacia, já havia um punhado de curiosos, aguardando a chegada da monstra, como diziam alguns.
Seus cinco filhos homens, na faixa de vinte a trinta anos, estavam no interior do prédio e viram sua mãe chegar com os punhos amarrados para trás, com uma corda. O mais novo chorou disfarçadamente. Os outros estavam atônitos.
Quando, por fim, Isolina foi levada a júri, e falou de viva voz sobre o inferno em que sua vida se transformara, depois que o último filho deixara a casa, a audiência, o júri e até o promotor encarregado de pedir a condenação ficaram sensibilizados.
Não houve uma testemunha que lhe desdissesse a mínima palavra. Algumas, inclusive, ainda reforçaram as tintas das atrocidades que o marido despejava sobre ela.
Ao final de dois dias de julgamento, e com base numa tal de legítima defesa subjetiva, combinada com a legítima defesa sucessiva e uma esquisita obnubilação dos sentidos, Isolina foi absolvida e saiu do prédio do fórum pela porta da frente, sob o aplauso de uma pequena multidão, que jamais tinha ouvido falar em feminismo e outras coisas mais que a modernidade inventaria, daí mais um tempo, para proteger as pessoas.
Seus filhos e netos, porém, nunca mais lhe tomaram a bênção, nem lhe beijaram a mão, como sempre faziam quando chegavam e saíam de sua casa. A mão que vibrou o facão estava condenada em família.
E ela ficou sem ter a quem abençoar.

15 de março de 2012

Ó, MINHA AMIGA!

ó minha amiga
escuta esse relincho nervoso do meu corpo
ao entender os sons que vêm de ti
e disfarça com teu riso frouxo e sem neblinas
a desfaçatez do meu olhar de hiena
vê que a noite nem é negra ainda
e já uivo solitário ao teu lado
reclamando o conforto do teu corpo
mais uma vez disfarça porém entrega-me teus sonhos
que guardas entre prendas e cuidados
eu saberei usá-los como um sábio

Orlando Teruz, Nu, 1964 (bolsadearte.com).

14 de março de 2012

LOURDINHA NA PRAÇA TIRADENTES

Quando Lourdinha botou os pés na Praça Tiradentes, Juscelino Kubitschek tinha acabado de inaugurar Brasília. Assim ela já pegou a cidade destituída de sua nobre função de capital da república, mas nem ligou para isso. O Rio continuava exatamente igual ao que era, inclusive até com certa efervescência política, com muitos funcionários federais aborrecidos por deixarem a praia e o samba, para ir trabalhar num descampado onde nem esquina havia, portanto sem bares e botequins.
E, de início, passeando com Prudêncio por alguns lugares, enquanto ele procurava uma colocação, que era o jeito interiorano de nomear emprego, em alguma padaria das imediações da Praça, é que se foi inteirando do maneirismo carioca, foi-se afeiçoando ao costume de falar chiando o s de festa, por exemplo. Ela achava isto muito chique e procurava sempre imitar, desde quando ouvia seus programas prediletos da Rádio Nacional em sua abandonada casa da vila de Liberdade.
Agora, ali, enquanto aguardava Prudêncio voltar do escritório, puxava assunto com um e outro no balcão do cafezinho, para ouvir mais e mais, a fim de que, rapidamente, assumisse o sotaque carioca. Na cola de tais conversas, sempre aparecia um homem mais atirado, a tentar algumas possibilidades, imaginando tratar-se de uma das moças das calçadas.
Lourdinha, aos poucos, percebeu o trabalho de tais mulheres e a confusão que a sua presença um tanto constante por ali produzia, sem que com isso se zangasse. Até achava interessante, excitante mesmo, ser confundida com uma delas. Então comentava com Prudêncio. E ria de sua cara feia. Ele não queria saber de mulher sua facilitando as coisas para outros. Nesses momentos, toda vaidosa do ciúme que despertava, dizia com satisfação que “o que é do homem o lobo não come”.
E, na peregrinação que empreendia, aos poucos Prudêncio ia perdendo o controle sobre Lourdinha, para quem a vigília constante era uma necessidade. Sua lubricidade não era coisa de se deixar sem cadeado de segredos, ou, em pouco tempo, tudo se iria perder.
E foi o que acabou ocorrendo.
Numa dessas saídas, por indicação do atendente do bar onde tomavam o café da manhã, Prudêncio se dirigiu a Botafogo, à cata de vaga de trabalho numa das primeiras pizzarias do Rio de Janeiro, instalada na Rua da Passagem.
Demorou-se por lá e, ao chegar, encontrou Lourdinha de conversinhas de pé de ouvido com certo tipo suspeito – topete alto emplastrado de brilhantina, bigode reto por cima do beiço e costeletas pronunciadas –, segurando entre os dedos de unhas envernizadas um cigarro alongado por uma escandalosa piteira negra, com detalhes dourados.
Pegou pelo seu braço e exigiu que o acompanhasse até o quarto do hotelzinho barato que ocupavam na Rua do Lavradio, desde que desembarcaram na cidade.
Contrariada, ela o acompanhou e, doravante, não mais se entenderam, até o dia em que ela arrumou sua mala, desceu as escadas de madeira, batendo o salto da sandália, e ele a viu, lá embaixo na calçada, encontrar-se com o tal tipo.
Duas semanas sumidas, encontrou-a, depois, com roupas sensuais, cara provocantemente pintada, fazendo ponto junto à Gafieira Estudantina, o tipo a dez passos de distância, mantendo a vigilância sobre sua nova fonte de renda.
Ele se aproximou. Ela tremeu. Derrotado, ele lhe perguntou pelo preço do programa. Era um valor que não podia pagar – seu dinheiro já começava a minguar – por aquilo que já fora seu sem favores, graciosamente.
Prudêncio baixou a cabeça, envergonhado, fingiu que limpava um cisco que lhe caíra ao olho, deu meia volta e atravessou a Praça Tiradentes, chorando como menino novo quando perde seu brinquedo favorito.
Lourdinha nem percebeu. Apenas colocou na piteira negra exageradamente longa, com detalhes dourados, o cigarro que mal aprendera a fumar. Ajeitou o cabelo e deu um passeio triunfal, sob o som da orquestra que atacava um bolero naquele exato momento: “Espérame en el cielo, corazón, si es que te vas primero”.

Audrey Hepburn, em Bonequinha de luxo, 1961, filme
de Blake Edwards (cineinblog.atarde.com.br).
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Veja, também, as histórias correlatas: As trovas de Anunciata e Lourdinha fugiu para o Rio de Janeiro.

13 de março de 2012

CONJUGAÇÃO

eu tenho minhas psicopatias
tu tens tuas blenorragias
ele tem suas economias
nós temos nosso serviço
vós tendes vosso compromisso
e eles nem isso

eu sou aquele que clama no deserto
tu és aquele amigo certo
ele nem por perto
nós somos os amigos do peito
vós sois os que dão jeito
eles são os eleitos

eu vivo aquela vida cachorra
tu reclamas de toda essa zorra
e ele porra!
nós suamos pelo pão de cada dia
vós vos matais por vossa alegria
e eles na oligarquia

um dia eu me multiplicarei nos meus
e tu renascerás em cada filho teu
mas ele continuará sozinho
nós então lançaremos nosso grito
vós nos seguireis desejos aflitos
aí eles estarão fritos.

Imagem em detalhemazul.blogspot.com.