30 de julho de 2012

REGISTRO ECONÔMICO-SENTIMENTAL DAS ATIVIDADES LABORATIVAS DA VILA DE CARABUÇU AO TEMPO DA MINHA MENINICE E ADOLESCÊNCIA, COM ACHEGAS PESSOAIS NEM SEMPRE PERTINENTES (PARTE II)

Vamos, então, à segunda e última parte desses registros econômicos e sentimentais sobre a minha vilazinha, à época da minha meninice e adolescência.
Também duas eram as padarias: a do Chico Furtado e a do Celestino Amil, na Coreia, que, com a ida do primeiro para Bom Jesus, adquiriu o ponto comercial dele, mais bem localizado.
Habbib Kator El-Kik, um árabe de pele trigueira, tinha um laticínio soturno. Quando brincávamos com seu filho, os labirintos do estabelecimento serviam de ruas escuras e mal cheirosas às nossas fantasias policialescas.
Outro laticínio, o do libanês Libelton Boechat, muito mais bem montado, era, de fato, uma pequena indústria, em que se processava leite e se produzia manteiga de excelente qualidade, a Manteiga Betão, acondicionada em vistosas latas estampadas.
Quatro eram as barbearias: a do Sebastiãozinho, aonde meu pai mandava a mim e ao meu irmão cortar cabelo topetinho - aquele igual ao do Cascão; a do Nego Souza; a do Moreninho, mais bem montada, para onde fui mandado aprender o ofício de barbeiro, e a do Adolfo, desafeto de meu pai, por conta de um negócio de compra e venda de casa. Papai, mais do que estressado com as trapalhadas do Adolfo, resolveu dar uns tiros nele, sendo contido por meu tio-avô João Pinto, que lhe fez ver a besteira que iria fazer com seu gesto.
Certa época, apareceu por lá uma família, que instalou uma lavanderia. Como era de se esperar em lugar tão pequeno, o negócio não prosperou. Como também ocorreu com a padaria do João* Gonçalves, um homem cheio de filhos - moços e moças -, que não se demorou na vila.
Isaías Souza e China eram alfaiates, cada um com sua alfaiataria. China (Otoniel Bilac) era um gozador, que vivia de caçoar dos outros. Isaías, mais sério, tinha ajudantes: Escurinho e Carlinhos Baratão. Por vezes, ia a esses lugares para ouvir histórias e casos engraçados.
Uma única oficina de relojoaria atendia a todos os relógios da vila e funcionava na casa do Alcides Andrade, com hora certa.
Três cocheiras (veja postagem) serviam aos diversos cavaleiros que demandavam a Rua, como chamavam a vila os moradores dos arredores: a do Jair Passarelo, a do Memeco e a do Juca Teixeira, localizada na Coreia.
Sapateiros estabelecidos eram o Waldemar, o Messias e o Filhinho Gregório. O pai deste, João Gregório era especialista em garrafadas sanativas para diversos males. Messias, pobre sapateiro remendão, tocava um garboso trombone de vara na Lira Operária Bonjesuense que, segundo as más línguas, era desprovido de som, por determinação do maestro, para a harmonia geral da Furiosa. Waldemar, entre uma meia-sola e outra, puxava terços e ladainhas na capela de Santo Antônio.
Havia também serralherias: a do Heitor Barroso era uma mini-indústria, com várias máquinas modernas e diversos funcionários; Aurílio, Jeremias e Mané Gibaita tinham oficinas mais simples, com foles tradicionais tocando as forjas. Mané Gibaita também era mecânico de automóveis.
Zé Carola e Bebeco trabalhavam com madeiras em suas marcenarias. Bebeco (Américo) era mais refinado; Zé Carola, mais rústico. Havia uma serraria, cujo dono não sei quem era (meu pai disse que pertencia a um tal Vitalino), com um grande pau-d'alho no meio, onde, nas horas de ócio, os meninos iam brincar e, às vezes, acabavam por quebrar o braço.
Cuidavam dos dentes da população, na função de dentistas práticos, o Dirceu Oliveira, irmão do Rossini, com consultório bem instalado, e o Alcides Dentista, que atendia o povo mais simples. As brocas eram tocadas a pedal e, comumente, ouviam-se gritos lancinantes de um e outro cliente mais sensível. Alcides deu a seu filho o nome de Stalin, que chamávamos de Estalim. A pronúncia dele para o nome do menino era Essetalim, com a última sílaba forte. Talvez ele não tenha entendido direito nem o nome, nem o papel histórico do ditador soviético.
O único meio de hospedagem na vila era a Pensão Liberdade, de dona Judith e João Coleto, que também exercia a função de técnico do glorioso Liberdade Esporte Clube.
Como meios de transporte, a vila dispunha de uma linha de ônibus que fazia a ligação com a sede do município, Bom Jesus do Itabapoana, via Apiacá e Usina Santa Isabel, e pertencia, inicialmente, a Alair e, depois, a Ivo Basílio. Táxi era o do libanês Amim Antônio. Minha avó jamais ia com o Amim, porque dizia que "não podia andar em carro fechado", pois passava mal. Automóvel ainda era uma palavra um tanto desconhecida entre nós, por aquela época.
 Já os transportes de cargas se faziam através das carroças de burro do Alcino Oliveira, do Idolino Mestre, irmão do João Mestre, e do Joanico. Havia alguns caminhões, que trabalhavam principalmente à época do corte da cana de açúcar: o do Walter e do Zé Figueiredo, meus primos, o do Zé Galo, o do Mansur (que às vezes deixava o bar, para fazer isso), o do tio Inácio - um pequeno caminhão Gigante da Chevrolet - e o de um hominho baixinho, mentiroso que só ele, que foi morar na vila por uns tempos e depois de lá se mudou, de cujo nome não me lembro mais.
Como serviços públicos, havia um posto de saúde, onde meu tio Cícero, escalavrava a pele dos braços da população, com uma pena de caneta tinteiro cortada na ponta, para incutir, assoprando por um canudinho, a dose de vacina que nos livrasse de algumas doenças epidêmicas.
Também um posto de atendimento bancário do antigo Banco do Estado do Rio de Janeiro, com quatro ou cinco funcionários. E um posto dos correios, que funcionava num dos cômodos da casa da Laura, casada com meu primo José Figueiredo.
O cartório de registro civil pertencia inicialmente ao Nico Fragoso, um homem culto e famoso por ser, naquele tempo, agnóstico e anticlerical. Não obstante isso, fazia simpatias para tirar verrugas. Ele mesmo acabou com uma verruga que me apareceu, apenas com meus dados de data e horário de nascimento fornecidos por meu pai. Como que por encanto, a verruga que me nascera na parte interna direita do pai de todos da mão direita sumiu. Até hoje não sei como isso se deu. Também não acredito em nada disto. Posteriormente chegou à vila, para substituí-lo, Aldemiro Oliveira, que lá ficou até a aposentadoria, eu já morando em Niterói.
Um belo colégio que ministrava as séries do antigo Curso Primário, em seis anos, era inicialmente uma Escola Típica Rural. Passou por obras de ampliação, ganhando mais três salas de aula e um auditório, e passou a se chamar Grupo Escolar Marcílio Dias, que está lá até hoje. Quando eu tinha meus quatorze anos, a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, antiga CNEG - Campanha Nacional de Escolas Gratuitas -, criou o curso ginasial, começando com a primeira série, no ano de 1961.
Também a vila passou a ser atendida por serviço de água e esgoto na década de 50. Lembro-me do trabalho de construção de um imenso reservatório de águas num morro próximo e da instalação de manilhas e canos e do registro em cada uma das casas. A este registro chamávamos "pena d'água". A inauguração do serviço foi com um grande churrasco para a população.
Como lazer e entretenimento destacava-se o serviço de alto-falantes do Narck Pontes que, duas vezes ao dia, enchia os ares da vila com sua programação musical, entremeada de propaganda do comércio local. À noite, sobretudo nos fins de semana, quando as pessoas iam passear na praça, era comum ocorrerem dedicatórias musicais: “Alguém oferece a alguém – e esse alguém sabe quem –, como prova de muito amor e carinho, o samba-canção de Enzo de Almeida Passos e Adelino Moreira, na voz de Nelson Gonçalves, Negue”. Na época, dizia-se o estilo musical, autores e intérpretes. Às vezes, até mesmo a gravadora: "Numa gravação RCA Victor...".
Eu mesmo, já franguinho emplumado, como não recebesse dedicatória de ninguém, armei uma fake: eu mesmo me dediquei e deixei programada, para quinze minutos depois, a retribuição: “Alguém oferece ao Saint-Clair como prova de admiração: Guarânia da Lua Nova, de Luiz Vieira, na voz de Agostinho dos Santos.”, que me retribuí com “Paz do Meu Amor, de Luís Vieira, na interpretação do autor”. Naquela noite de sábado passeei soberbo na rua e na pracinha. E foi só: ninguém mais me ofereceu música nenhuma. Então resolvi economizar os dois cruzeiros de cada dedicatória, para chupar picolé ou tomar guaraná. Seria mais proveitoso!
Cinema era outra diversão um tanto sazonal. Por algumas vezes, ficávamos órfãos da "maior diversão", como se dizia à época. Até que Zezete Andrade, irmão de Elói e aficionado por cinema, comprou dois projetores de 16mm e, com frequência, exibia filmes no salão de bailes do Liberdade Esporte Clube. Algumas pessoas levavam de casa suas cadeiras, a fim de que tivessem um pouco mais de conforto do que o oferecido pelos bancos e cadeiras que o clube disponibilizava. Era comum vê-las sendo carregadas às costas dos espectadores pelas ruas da vila nos dias de sessão. Elói, além disso, em dias de jogos do Vasco da Gama, carregava no ombro um gigantesco rádio portátil Transglobe da Philco, e, no meio da sessão, gritava comemorando os gols de seu time. Nesta hora, toda a plateia retrucava: "Cala a boca, Elói!".
Com o advento do golpe de estado que derrubou João Goulart, em 1964, uma das primeiras providências do governo Castello Branco foi ordenar a erradicação de cafezais, na tentativa de aumentar seu preço no mercado externo. O resultado imediato da desastrosa medida, além de falcatruas em pagamentos pela retirada de plantações e mais plantações que enchiam o distrito desta riqueza agrícola, foi o êxodo rural. As roças perderam as pessoas, que partiram para os grandes centros, como o Rio de Janeiro, o que, aos poucos, foi transformando a vila próspera e vibrante em um amontoado de casas sem o brilho de outrora. 
Carabuçu ainda está lá, querida por seus filhos, mas sem a pujança dos meus tempos de menino e adolescente.

Wassily Kandinsky, Outono na Bavaria (séc. XX), em jokerartgallery.com.

(*Corrigido a partir de lembrança da amiga Riva.)

28 de julho de 2012

REGISTRO ECONÔMICO-SENTIMENTAL DAS ATIVIDADES LABORATIVAS DA VILA DE CARABUÇU AO TEMPO DA MINHA MENINICE E ADOLESCÊNCIA, COM ACHEGAS PESSOAIS NEM SEMPRE PERTINENTES (PARTE I)


(Dedicado a todos os que aqui vão citados, vivos e mortos, sem distinção, pois todos são parte da minha história de vida.)

Quando a disposição física amaina, para compensar, o cérebro dá de produzir a efervescência de coisas que estavam assentadas em algum escaninho emperrado da memória, pegando a poeira do tempo.
Pois foi o que me ocorreu, ao ir de Niterói para Miracema, por esses dias. O rádio do carro tocando um cd que gravei como um DJ alucinado, tal a variedade de músicas - de Vivaldi a Alpha Blondi -, a cara-metade ao lado a cochilar asfalto afora, e as gavetas das reminiscências abrindo e fechando, no embalo das curvas e no solavanco das imperfeições da estrada.
Como flashes, surgiram-me nomes, locais, atividades, que faziam de Carabuçu, no meu tempo de menino, uma vila cheia de gente e, portanto, de vida, de movimento. Principalmente aos sábados, quando o povaréu que habitava as roças do seu entorno, para ela acorria, no afã de comprar provimentos para a semana, aproveitando também para se divertir, encontrar amigos com que trocar uns dedos de prosa, lamber uma "dósia" daquela que matou o guarda, tentar a sorte na sinuca, no cisprandi, no carteado e na roleta.
Vez e outra, alguns homens se juntavam para cantar calango, para bater caxambu, quando diziam versos tradicionais e de improvisos, alguns líricos, outros satíricos, outros tantos fantásticos, como esses que me ficaram na memória, sempre cantados repetidamente, com ligeira alteração apenas na melodia: 
“Na cama de Jesus Cristo,
Quantos travesseiros tem?"

"Menina bonita chegou agora
De Santa Luzia de Carangola."

"O meu boi tava chorando
Só porque botei na canga."

Aí começaram a me aparecer as imagens. O caxambu, por exemplo, não era batido na caixa que lhe dá o nome, mas, antes, em caixotes de sabão vazios, que percutiam som assemelhado ao do instrumento, conseguidos, por exemplo, na venda do Cirilo.
Cirilo Braz tinha seu pequeno armazém de secos e molhados, semelhante ao de meu pai, que ficava do outro lado da rua. Maior e mais sortido que os dois, era o do tio Nalim, situado bem pertinho, na rua em frente, a Cel. Antônio Olímpio de Figueiredo (nome do meu bisavô).
A favor do de tio Nalim, havia o maior sortimento de mercadorias e o atendimento por dois ou três caixeiros, como chamávamos os atendentes de balcão. Seu Cirilo vendia pinga e pastéis que sua mulher, dona Flor, fazia. Já o movimento da venda de meu pai era intenso por conta dos pés de moleque feitos por mamãe e da roda de conversa de pescadores e passarinheiros, que ali se juntavam para desfiar casos sem fim.
Havia ainda as vendas do Lulu, que depois adquiriu o negócio de Quinca Emiliano e trocou de ramo, do Nilson Pontes, do Elias Penudo e do Elói Andrade, também próximas, e as do Lili e do Rossini Oliveira, na Coreia, uma espécie de bairro, após o morro do cemitério. Na rua de entrada da vila, ficava a venda do Aristides Turques, que, certa época, resolveu plantar tabaco, que processava em forma de rolo - fumo de rolo -, para o consumo da vila e dos vizinhos.
Quando eu era muito pequeno, aos sábados, às vezes, quando minha mãe não podia, seu Aristides Lugão ajudava meu pai a despachar os fregueses. Depois que fiquei maior e mais esperto, eu mesmo fazia isto.
Na falta de geladeira, Elói tinha um fosso redondo no canto de sua venda, em que colocava garrafas de bebidas sob sal grosso, a fim de refrescar o líquido. Lembro-me também que, durante as eleições, alguns políticos encomendavam a ele o fornecimento de refeições a seus eleitores, que comiam fumegantes e cheirosos pê-efes de dar água na boca, sobre uma longa mesa improvisada a céu aberto. Vendo aquela comilança toda, ficava torcendo para chegar meu tempo de eleitor, só para desfrutar daquele prazer que via nos olhos das pessoas humildes devorando pratos e mais pratos de comida.
Armarinho, só a loja do Felisberto Gonçalves, onde certa vez comprei pequeno porta-joias de louça como presente de aniversário para minha professora, o qual se espatifou à entrada da sala de aula, devido a um tropeção na soleira da porta. Meu coração também se partiu em inúmeros cacos pelo chão.
Já as lojas de tecidos eram em maior número: a maior, do tio Nalim, colada à sua venda de secos e molhados; do outro lado da esquina, a do João Mestre; mais acima, a do Cid; e mais abaixo, a do Enéas Lírio, que posteriormente trocou de atividade e abriu um bar no local. Todas elas, com variada oferta de tecidos. Quando surgiram as primeiras camisas Ban-Lon, uma febre então, alimentei o sonho de um dia poder comprá-las. Ao crescer e ganhar meu dinheirinho, as camisas já não eram tão caras e já não estavam tão na moda. Mesmo assim, comprei uma na cor vinho. Seu tecido sintético e elástico amoldava-se ao corpo do usuário, mostrando músculos e gorduras sem constrangimentos.
Açougues havia o do Antonio Manhães, sucedido por seu irmão Deco, em outro local; o do meu tio Tônio Pinto, que ora também tinha bar. Custódio Quintal, além das carnes, aproveitava para vender picolés. Ciloca Peçanha, o Pé de Rodo, também teve seu açougue. No açougue do tio Tônio, sempre que ia pegar a carne que minha mãe encomendava, pedia a ele para comer o tutano da canela do boi. Ele me autorizava e eu metia o dedão no orifício do osso, de onde tirava porções de tutano, que comia mesmo cru.
Bares e botequins eram muitos. O de Antônio Chambão, com uma grande mesa de sinuca, vendia ótimos beijinhos de coco e marons; no do libanês Altivo Sabino e no do seu filho Mansur, eram os quibes fritos; os de Mateus e seus filhos Almerando e Roldão, cada um com o seu, com mesas de sinuca e bilhar; o do Barrosinho, que fazia uns picolés em que, de vez em quando, achávamos penugem de pombo; o do Manuel Ribeiro, que tinha aspecto mais familiar e onde Celinho, meu primo, comprava pastilhas de hortelã que chupávamos para, em seguida, beber água e senti-la geladinha. Mais tarde, tio Aylton comprou o do Barrosinho, onde, por breve tempo, andei atendendo e servindo cachaça gelada para Darcizinho, filho do Darci Modesto, comerciante de bebidas, aí incluída a dita cuja que passarinho não bebe.

Certa vez, Roldão veio ao Rio de Janeiro, de onde voltou com uma novidade tecnológica, para incrementar o atendimento aos clientes: um reluzente liquidificador. Foi o primeiro que vi na vida. Roldão, todo orgulhoso, mostrou para mim e meus primos, que fomos comprar picolé, a nova geringonça. Celinho, sempre curioso e debochado, resolveu perguntar ao Roldão qual era a velocidade do aparelho. Em sua fala estropiada pela gagueira, o dono do bar, disse:

- Quer dizer... quer dizer... noventa por cento.
- Noventa por cento de quê, Roldão? - quis saber Celinho.
- Não, não, sei. Só, só, sei di-dizer que é noventa por cento.
Farmácias eram duas: a do Zé Ferraz, o Zé da Farmácia, e a do Antônio Miranda. Na do Zé, além das injeções de Gadusan na veia, podíamos ler sua coleção de gibis de faroeste. Antônio Miranda era pai de Tarcísio, meu amigo e dono de uma maravilhosa coleção de Estampas Eucalol, com que aprendíamos sobre cultura geral em pequenas e belas doses. Hélio Contreiras imortalizou essas figurinhas na canção Estampas Eucalol, gravada originalmente por Xangai (veja o clip aqui: http://youtu.be/Y4-35AIQJoQ)
Juca Jacó e Quinca Emiliano tinham, em seus armazéns de beneficiamento, máquinas de pilar arroz e moer milho. Meu avô Juquinha de Paula, na entrada da vila, administrava o de pilar café e arroz de propriedade do libanês Quirino, cujo nome deve ter sido obviamente adaptado. Normalmente a paga pelos serviços prestados era feita com parte da produção. Por isso era possível comprar com eles arroz pilado, fubá e canjiquinha.
As quitandas eram duas: a do Joaquim Moreira e a do Caio Manhães, esta última notável pela desarrumação das mercadorias que se amontoavam a partir das portas de entrada e pelo comportamento histriônico de seu proprietário, sempre espaventoso.

Piet Mondrian, Árvore cinza (1910), em paintings.name.

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Nota: Para não cansar meu estimado leitor, dividi este texto em duas partes. A segunda virá postada logo a seguir.

26 de julho de 2012

INUMERÁVEL BAÍA

essa baía
todo dia
tão igual tão repetida
se renova
se recria
que a cada dia
é outra baía
essa mesma baía
sai dia
entra dia
é sempre
cheia ou vazia
tão diferente baía
essa só e única baía
de todo dia
não é uma só e única
cálida ou fria
é simplesmente
a cada dia
inumerável baía
Baía da Guanabara, a partir de Niterói, com a Pedra de Itapuca em primeiro plano, MAC à direita e Pão de Açúcar e Cristo Redentor ao fundo (foto do autor).


(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 16/3/2010.) 

24 de julho de 2012

COMO INDICAR SEU PROCTOLOGISTA PARA UM AMIGO

Uma das coisas mais constrangedoras que possa haver é você indicar proctologista para alguém.
Que recomendações razoavelmente boas, sensatas e não comprometedoras você dará ao seu amigo, ao seu parente, sobre as qualidades do cara cuja missão na vida é examinar você a partir do fiofó? Daí para dentro!
Essa preocupação, podem acreditar, me veio à mente outro dia, quando fiz isso com um amigo.
Quando lhe disse que o meu médico era muito bom, simpático, essas coisas, o negócio ficou esquisito. Eu não tenho de achar proctologista simpático ou bom, fazendo comigo justamente o que ele faz.
Em princípio, todo proctologista é um abusado! Se simpático, passa a ser um sádico torturador!
Aliás, seria preferível que ele fosse carrancudo. Não esboçasse nem mesmo o mínimo sorriso matreiro no canto da boca. Que não se pudesse vislumbrar no seu olhar a mínima faísca de satisfação por estar fazendo bem seu trabalho, como é normal e desejável em qualquer outra profissão. Lá isso é trabalho que se faça?! E logo com a minha pessoa?!
Mas eu fui dizer isso e pegou mal.
Na verdade eu queria dizer, mas não tive coragem, porque iria ser ainda pior, era que o calibre do dedão dele não apavora. Não lhe dá aquela sensação prévia de pânico, que ocorre só em cumprimentar com um aperto de mão.
É que já vi médicos com as mãos de Mike Tyson, de Anderson Silva – sabem? –, aquela pata elefantina capaz de apavorar só de olhar.
Quando cheguei a casa e refleti sobre tudo o que dissera ao amigo, percebi que a única justificativa aceitável para a recomendação – já que o estupro é inevitável – é o tamanho do dígito do indigitado esculápio. Vacilei um pouco, mas peguei o telefone e liguei para ele:
- Aí, fique tranquilo: o dedão dele não passa de um dedinho. Ele tem mania de gavar o tamanho dele, como nós temos o de gavar o tamanho daquilo.
E caímos numa gargalhada nervosa que durou até depois do fim da ligação.
Pelamordedeus!

Imagem em meuchefenaosabe.blogspot.com.

22 de julho de 2012

UM ESTRANHO NO PRÓPRIO NINHO

Estava em Bom Jesus, quando recebi ligação de um amigo, ex-morador do meu condomínio, querendo saber o que estava acontecendo, já que tivera notícia de movimento de bombeiros diante do prédio.

Depois de pedir ao amigo Cecchetti, que mora próximo, para assuntar o ocorrido, fiquei sabendo por ele de um incêndio na casa de força do bloco 1, justamente o em que moro.

Três dias depois, estava em Niterói, abrigado na casa de minha filha. De quarta-feira a sábado, lá estivemos eu e minha mulher.

Todos os dias, ia ao prédio para acompanhar os trabalhos de recuperação dos serviços básicos de água, luz, elevadores, na ânsia de voltar para casa.

E percorri os endereços naturais, por onde passo sempre: o bar, a banca de jornal, a padaria, o banco, o supermercado, a quitanda chique, e senti uma estranha sensação, nos dias em que estava flagelado, de que um pouco daqueles ambientes, antes tão familiares, me pareciam um pouco estranhos, como se eu fosse um visitante e não um local. Uma sensação mais ou menos parecida com aquela que se tem ao visitar uma cidade pela terceira ou quarta vez: conhece de vista, mas não tem intimidades.

E sentia-me um tanto deslocado, como se fosse figura recém-inserida, querendo estreitar relações.

Não pude evitar tal sensação. Não fui eu que a quis. Ela se impôs. Parecia que eu não era mais habitante daquele mesmo apartamento, desde 1981, naquele mesmo pedaço de Icaraí. Eu havia mudado de endereço e tentava manter velhos laços que se estavam esgarçando.

Talvez tenha sido a mesma sensação experimentada ao vir, em 1967, para a cidade, a fim de fazer meu curso superior.

À época, fui morar numa pensão, na rua Pereira da Silva, na primeira quadra, pertinho da praia. Do outro lado da rua ficava uma loja com duas mesas de totó (ou pebolim, conforme a região). A regra de se jogar consistia em a dupla perdedora abandonar a mesa e uma nova dupla pagar a ficha e desafiar a dupla vencedora. Assim quem vencesse continuaria jogando com a ficha alheia.

Numa tarde de sábado, alguns rapazes da pensão foram até a loja para jogar, seguindo as regras. Contudo outros, naturais da cidade que já lá estavam, disseram que não poderíamos jogar, porque não éramos de Niterói (eles sabiam que morávamos na pensão). Se não fosse a intervenção firme e decidida do nosso amigo Zeca, um pouco mais velho que a turma e niteroiense como eles, talvez a coisa se degenerasse.

O sentimento que me ficou deste episódio só não foi pior, porque eu tinha absoluta certeza, naquele instante, de que eu não sofria da doença social deles: eles eram piores do que eu, do que nós, porque eram preconceituosos. Não foi confortável, é verdade, mas superei.

Pois agora, com a história do abandono forçado do meu lar (talvez seja isto), a noção de pertença do espaço social deve ter-se diluído um pouco. E eu me senti um estranho no próprio ninho.

Por isso é que fiquei imaginando o sofrimento que deve ser a perda total do lar – por uma catástrofe qualquer. Deve ser um terrível desconforto!

Voltei hoje, sábado, para casa. Espero que amanhã, ao ir à mesma banca de jornal do amigo Antônio, possa dizer o mesmo bom-dia de muitos anos com o sabor da coisa mais prosaica do mundo, mais simples. Sem a impostação de um momento social com certa tensão entre interlocutores que apenas se conhecem de vista.

Ilustração de minha neta Gabi (7 anos), em Paintjoy.

21 de julho de 2012

ÚLTIMA TENTATIVA

será que um dia por acaso me virá a morte?
talvez não por acaso mas com certeza
e lá sobre a cama indefeso moribundo
entre pedaços de pulmão espalhados pelo quarto
e um cheiro fétido de suor ardido
o coração tangido pelo vento da janela
os olhos baços a pele macilenta
ralos cabelos em desalinho
direi à indecente antes que me assuma
numa tentativa heroica de manter-me vivo:
- xô, nojenta, vai procurar tua turma!
Imagem em ociodooficio.com.br.
(Publicado orginalmente em Gritos&Bochichos, em 18/3/2010.)

19 de julho de 2012

A BARRIGA DA MINHOCA

(Para meus netinhos Gabriela e Bruno.)

Há uma coisa esquisita
Que um dia quis descobrir
Aquele menino esperto.
E Bruno, que é seu nome,
Irmão da linda Gabi,
Pra ela foi perguntar:
Como é que a minhoca come?
De que lado fica a boca?
E o cocô onde é que sai?
E a barriga onde é que fica?
Qual é a parte da frente?
Qual é a parte de trás?
E o filhote da minhoca
Em que colégio ele vai?
Mas será que tem colégio
Para minhoca estudar?
E durante o recreio,
Na hora de merendar,
Será que o filhote gosta
De maçã e maracujá,
De sanduíche de queijo,
De guaraná ou de coca
Ou só da terra mexida
Onde ela faz sua toca?
Mas afinal onde fica
A barriga da minhoca?
E a Gabi tomou um choque
Com tanta pergunta posta,
Que até ficou sem resposta
E não soube esclarecer
A dúvida que ao Bruno toca:
Afinal onde é que fica
A barriga da minhoca?


Imagem em imagem.eti.br.

17 de julho de 2012

MORRE JON LORD

(Postado  originalmente em Gritos&Bochichos, ontem à noite.)


Do meu quase exílio mensal em Bom Jesus, soube agora à noite da morte de Jon Lord, tecladista e compositor do emblemático grupo de rock inglês Deep Purple, e posso dizer aos que me prestigiam com a leitura que fiquei realmente sentido.
A barulhenta e acelerada música do Deep Purple embalou minha juventude. E até hoje é, no estilo conhecido como Hard Rock, a minha preferida. E confesso que, mesmo na idade provecta em que me mantenho sobre a face do planeta, não passo muito tempo sem voltar a ouvi-la. Meu amigo, Rogério Fernandes, baixista dos bons, sabe muito bem disto e não opõe reparo. Até, inclusive, me deu dicas sobre coletâneas que não encontramos normalmente no mercado brasileiro, que tiveram de ser importadas.
Tenho sua discografia quase completa, em vinil e em cds, além de alguns dvs de shows.
Jon Lord colocou seu teclado nervoso a serviço da massa sonora do grupo. O longo solo inicial de Lazy, uma das faixas de Machine head, é um belo exemplo disto.
Diferentemente de outros da mesma linhagem estética, o Purple não abrandava a pegada vigorosa com alguma canção dolente, para permitir que o fã relaxasse por breve instante. Seus discos eram, com frequência, uma pauleira só, como costumávamos dizer, do princípio ao fim. E, o mais interessante, com melodias facilmente assobiáveis, malgrado o peso.
E, se o Purple teve na guitarra de Ritchie Blackmore um de seus pilares, teve também no órgão de Lord um nervo exposto a cada solo, assim como na voz inconfundível de Ian Gillan, assessorados pela cozinha de Ian Paice, na bateria, e Roger Glover, no baixo, em sua clássica formação.
O rock faz centenas, milhares de heróis. Alguns, tristes heróis, que se deixaram imolar absurdamente pelas drogas. Lord morre prosaicamente como um cidadão comum, acometido por um câncer de pâncreas, que o levou a uma embolia pulmonar.
A vida o deixou sem fôlego, como os seus rocks vibrantes, pesados, nos deixavam a cada audição.
Hoje, para mim, é uma noite negra, de um púrpura escuro, profundo. Mas Lord passa como uma bola de fogo pelo horizonte sacudindo minha preguiça de Bom Jesus.
Rest in peace, Jon Lord, the lord of keyboards!



Capa da primeira bolacha que adquiri do Deep Purple, Fireball, de 1971. Lord, ainda jovem, é o primeiro em cima.

14 de julho de 2012

POEMA LINEAR Nº 1: JOÃO&MARIA

Maria tinha mania de se desfazer em ais e uis nos braços de João.

E ficava dolente, feito violão dedilhado com cuidado, como só a João competia tanger.
E Maria urgia em estar com João, como se fosse um determinismo, uma consumição.

Então João perdia o chão, nos braços de Maria.
E ia João à procura do corpo de Maria, como se fosse carpir eito de terra fofa, ao luzir do dia, ao raiar da aurora. De qualquer dia que fosse, a qualquer hora, pois qualquer dia com Maria era um agonia de gostoso, de um tempo que não existia.

E João, bem moço, carpia que carpia o corpo de Maria, num trabalho jeitoso, jeito de peregrinação, como nas antigas procissões e romarias, em que se suplicava ajuda do céu, quando a seca exigia.

Tal Maria se dava, que a um só soluço de João, o céu se abria em choro e sobre a terra exsicada corria um turbilhão aquoso, que extinguia a seca mais cruenta que pudesse haver neste mundo.

E obrava João sobre o corpo de Maria o milagre da frutificação. Até que um dia brotava um pé de gente, em forma de menino, do ventre de Maria.

E assim ia a vida. E assim a vida ia.

Tarde chuvosa (foto do autor).


12 de julho de 2012

A LÍNGUA QUE FALO

Por certo não falo a língua dos anjos
Ainda que anjos tenham língua

Tampouco falo a língua dos bichos
Conquanto os bichos tenham tido língua nas velhas fábulas
Mal e porcamente falo a língua incorreta dos homens
Meus iguais meus dessemelhantes
Que às vezes até se presta a confusões
Mas sempre com a vontade de me comunicar

Por isso não gosto de metáforas herméticas
Cujos sentidos escapem ao bom senso cotidiano

Falo a língua da copa e da cozinha
Da sala de visitas da casa simples
Que oferece uma xícara de café a quem chega
Falo a língua do alpendre sobre o terreirão de café
A língua do quintal barrido com bassoura

A língua dos nobres salões da elite
Posso até entender
Porém prefiro a língua que me fervia na boca
Na minha vilazinha perdida
De Liberdade

E que me dava tanto gosto!

Obra de Carlos Scliar (1920-2001), em vitruvius.com.br.

10 de julho de 2012

TIPO ASSIM (V): PEDRO NUNES

Pedro Nunes era filho do primeiro casamento de Tito Nunes e dona Nega. Seu pai se casou mais outras vezes e teve filhos sem conta. Pedro era um dos mais velhos deles todos.
Amigo de meus tios e de meus pais, era também amigo de todos na vila. Nunca soube de alguém que não gostasse do Pedro.
Enquanto morei em Carabuçu e, posteriormente, em Bom Jesus, Pedro era um invicto solteirão. Faziam, inclusive, troça dessa sua condição, com brincadeiras como: “Me empreste aí um dinheiro, que lhe pago quando o Pedro se casar”.
Talvez, por isso, é que Pedro vivia de bom humor, com um constante sorriso, caçoando de uns e de outros.
Eu era menino e já gostava dele.
Mas o tempo passou. Vim para Niterói estudar. Casei-me por aqui com Jane, e daí a pouco nasceu nosso primeiro filho, a quem demos o nome de Pedro. Não havia sido propriamente por ele, antes pelo nome, de que gostamos. Nome forte, nome rijo, bom para um menino.
Quinze dias após o nascimento do nosso Pedro, toca a campainha do meu apartamento, num sábado de manhã – devia ser lá pelas oito horas, se tanto. À época não havia o hábito de se anunciarem as pessoas por interfone. Nem me lembro se havia interfones no prédio.
Abri a porta, e era o Pedro. Com o seu sorriso característico, mala na mão, estava chegando de Bom Jesus e tinha ido me agradecer a homenagem que lhe fizera, por ter colocado seu nome em meu filho.
Dei-lhe um abraço feliz. Ele abriu a mala e tirou um presente para meu filho. Apresentei-lhe seu xará, ainda enrolado em cueiros, conversamos um pouco, tomamos café, e lá se foi o Pedro carregando sua alegria de viver.
Passou-se o tempo e Pedro se casou.
Havia tanta expectativa por seu casamento, que seu Nelson Mota, proprietário da Fazenda da Liberdade, havia prometido lhe dar um de seus bois para o dia em que isso ocorresse. Eu mesmo, ainda jovem, fui testemunha da promessa, feita sob a risadaria dos presentes na barbearia do Moreninho, onde eu andava cometendo uns caminhos de rato em cabelo alheio e uns piques de navalha na cara de corajosos conterrâneos.
Pois, de convite na mão, o Pedro cobrou o boi prometido, que se transformou num grande churrasco no campo do Liberdade Esporte Clube, em comemoração ao seu casamento, a que não fui. Apenas vi as fotos da efeméride.
O tempo continuou correndo. Pedro não teve filhos. Mas teve a grandiosidade de adotar os dois filhos de sua secretária do lar. Não queria deixar ao desamparo, quando morresse, aqueles meninos a que se afeiçoara.
Por uma dessas coincidências que a vida nos arma, comentava esta história da adoção com um casal de amigos de Niterói, para destacar a grandiosidade de alma do Pedro. Meu amigo, então, me disse que o conhecia. Tinha sido seu colega de trabalho na Secretaria de Fazenda: ambos eram fiscais de ICMS.
E me contou algo que reputo como um dos maiores elogios que um servidor público possa merecer.
Disse-me ele que vários fiscais, seus colegas de função, não gostavam de trabalhar com Pedro. E, por ter estranhado a informação, já que sabia do seu espírito bonachão, perguntei-lhe por quê. Meu amigo, então, me disse:
- É que, com Pedro, não há jeitinho! Ele não transige, não aceita conversa, agrado. Age estritamente dentro da lei. Aí quase ninguém quer tirar serviço com ele.
E eu entendi: Pedro não levava propina, não achacava, não se submetia à corrupção.
Naquele momento, fiquei sensibilizado por saber de mais esta característica do meu amigo e pensei em lhe escrever uma carta, dando tal depoimento. Ele precisava saber disto. Valia muito mais do que qualquer elogio em folha funcional.
O tempo continuou passando, e a gente olhando pela janela, qual a Carolina do Chico.
Até que em janeiro deste ano, quando em visita a meus pais em Bom Jesus, voltou-me à lembrança a carta até então não escrita, nem enviada. Assim falei para a minha mãe desta minha disposição. Para minha frustração, ela me disse que já não seria mais possível Pedro saber deste elogio. Ele morrera repentinamente no fim do ano anterior, fulminado por um coração maior que o mundo.
Este texto tem, deste modo, o objetivo de lhe fazer justiça póstuma. E os meus prezados leitores que compartilharam da amizade e do conhecimento da figura ímpar de Pedro Nunes também gostarão de saber deste seu traço de dignidade como funcionário público.

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Evaristo BASCHENIS (1617-1677) - Instrumentos musicais sobre uma mesa (em eurocles.com). 

8 de julho de 2012

DÁ PARA ACREDITAR? (Cordel destrambelhado)


Não moro na minha rua
Não habito meu estado
A cidade em que não vivo
Está sempre do outro lado
A casa que desabito
É aberta a cadeado.

Minha cama é de araque
E não tem mola o colchão
O guarda-roupa na sala
Os quadros ficam no chão
A sala eu transformei
Em garagem no porão.

Eu me visto pobremente
Com fraque e com cartola
Meu pensamento se expõe
Dentro da minha cachola
Se eu não canto desafino
Desaprendo na escola.

E o meu café é coado
Passado na frigideira
O pão de forma grelhado
A manga é de goiabeira
A manteiga do meu pão
Na cabe na manteigueira.

Minha calva é cabeleira
Os olhos escutam som
Os ouvidos veem longe
Quando claudico está bom
O paladar pede azedo
E sente amargo o bombom.

Todo futuro é outrora
O meu pertinho é distante
E a constância que eu viva
É sempre muito inconstante
E o que dura a vida inteira
Não passa de um instante.

A lógica é sem sentido
O vaivém é inverso
O verso parece prosa
A prosa parece verso
E o quintal da minha casa
Encerra todo o universo.

Minha mocidade é velha
Mas a velhice é bem nova
Eu nasci em cova rasa
Digo mas não tenho prova
E ao morrer de velhice
Minha vida se renova.

Me vacinei pra doença
Piorei ao me sarar
Doença só me faz bem
Saúde é meu mal-estar
Falando não digo nada
Sou mudo sempre ao falar.

Tristeza me faz sorrir
Alegria dá tristeza
Sou com certeza inseguro
E seguro na incerteza
No escuro tenho luz
No claro só escureza.

Das verdades do futuro
Todo mundo desconfia
O passado chega cedo
E não tem mais serventia
Pois tudo que é atual
Perdeu a ordem do dia.

Saúdo ao despedir-me
Despeço-me ao chegar
Desperto quando me deito
Dormito ao levantar
Às vezes minto um pouquinho
Se a verdade apertar.

Termino por começar
Me despedindo assim
Saudando a quem não me leu
Esta prosa bem chinfrim
Plena de verso e de rima
Começando pelo fim.

Imagem em olivre.com.