29 de julho de 2015

MEU PAI EM MIM

"Retrato de Pai e Filho" - Antony van Dyck
Pintor retratista flamengo (1599-1641) - (em deniseludwig.blogspot.com.br).


Às vezes me pego repetindo pequenos gestos do meu pai e o reconheço mais em mim do que eu mesmo. Como, por exemplo, hoje ao almoço, ao mexer a comida com o garfo e dizer uma frase banal qualquer. Eram seus trejeitos e sua entonação.
Dezembro passado, me bateu uma saudade desgraçada dele, e fui para a área de serviço chorar como um bezerro desmamado, como dizíamos lá em Carabuçu. Foi do nada, vindo assim sem mais nem menos. De repente, senti um buraco inexplicável no peito e desandei no choro. Me escondi porque fiquei com receio de que Jane me visse naquele lamentável estado de criança abandonada, sem pai, chorando pelas sarjetas da vida. Seria muito difícil explicar um coroa chorando tal criancinha.
Mas isto não se dá sempre. Aliás foi a única vez em que chorei copiosamente sua ausência. Até mais do que quando o vi prostrado no caixão em que foi sepultado. Naquele instante lá, o que nos ocorria sobretudo era que ele tinha deixado de sofrer, como vinha ocorrendo. E, a par da dor da perda, havia também o conforto de que, se é que morremos todos, pelo menos que não se sofresse mais para chegar a termo.
Mas em dezembro foi dolorido.
Contudo sinto que ele está presente no que deixou em mim. Como nesses pequenos instantes em que eu, tão diferente dele fisicamente e até psicologicamente – sinto-me muito mais parecido com minha mãe –, reconheço com nitidez um gesto seu, uma frase sua, uma postura corporal que ele tinha.
Claro que herdei dele muito mais do que racionalmente imagino. Há de haver muitos outros dados que, ao longo da vida, agora ultrapassado o tal Cabo da Boa Esperança, eu vá identificando como seus.
E, de certa forma, isto me espanta, pois fica a sensação de que, bem aos pouquinhos, eu seja menos eu e mais ele. No entanto essa talvez seja a certeza básica de que não morremos de todo, não desaparecemos para sempre e por completo. Sempre haverá um desses minúsculos componentes de personalidade que se repetirão gerações afora. Quem sabe eu também tenha, na minha postura, algum traço de meu avô, meu bisavô! Quem sabe, mesmo de minhas avós ou bisavós!
Somos um pouco replicantes daqueles que nos precederam. Do meu pai, tenho clara essa sensação. A cada dia, me descubro um pouco mais ele.
E nisto tenho um prazer danado, que ele era um homem de bem, um homem honrado.

18 de julho de 2015

CHEIRO DE MOLEQUE


Tirante o cheiro normal do moleque que não gosta de banho e vive jogando bola só de calção, lá no meu interiorzão todos os moleques tinham três cheiros característicos, se não me falha a memória olfativa: mexerica, jenipapo e jaca. Todas elas são frutas de odor pronunciado e aderente.

Se não tivesse um cheiro, tinha o outro, quando não os três juntos, o que, então, era praticamente insuportável para os mais velhos.

Para mim, porém, não fazia a mínima diferença: quando fiquei mais velho já não morava lá. Lá eu só fui menino. E, quando adolesci, cacei rumo na vida e tentei usar Vitesse e Lancaster, perfumes que todo jovem quebrado usava. Assim, lá, eu também era um dos portadores de um daqueles cheiros.

Aqui na cidade grande as crianças recendem outras fragrâncias.

Quando a van escolar que trazia meus filhos de volta à casa, no final da tarde, abria a porta, liberava um cheiro de frango molhado. O odor era terrível! Tanto que milha filha, ainda pequena, pediu encarecidamente que não viesse mais naquela horrível câmara de tortura. Ela mesma não suportava.

Pois não é que hoje comprei numa quitanda de luxo perto de casa, dentre outras frutas, um pedaço de jaca!

Jaca, que naturalmente Proust não devia conhecer (imagem em baixaki.com.br).

Na hora em que escolhia a porção adequada a consumo único – minha mulher disse que não iria querer –, ainda troquei ideias com um casal do outro lado da bancada. A esposa do freguês, inclusive, era especialista em jaca, pois ponderou, com dois pedaços não mão, que um era de jaca pau e o outro, de jaca manteiga.

Nunca tive preconceito contra jaca. Pau ou manteiga, eu iria comê-la de qualquer jeito, pois, se há um método infalível de se voltar no tempo – e Marcel Proust está aí para não me deixar mentir –, este passa pelos sentidos do corpo. E o cheiro daquela jaca esquartejada da quitanda me incentivou a isso.

Escolhi o meu pacotinho de jaca cortada, que comportava cerca de oito favos, trouxe-o para casa e comi com a mão, isto é, sem uso de talher, que é a única forma civilizada de se comer jaca. E fiquei com o cheiro impregnado em minhas mãos até agora, momento em que dedilho estas bem traçadas.

Então voltei à infância em que ia para os quintais e os pomares de Carabuçu comer frutas no pé.

Nos quintais da minha avó Maína e do tio Alcides Almeida, eram as laranjas e mexericas que faziam a festa: lima, baía, seleta, coroa de rei, serra d’água, lima-da-pérsia. Na serra, onde moravam meus tios Herson e Alda e meus nove primos, eram abundantes a manga, a jaca, a graviola, o biribá e diversos tipos de laranja. Mais acima, já no topo, casa dos tios Aldany e Neusa e mais quatro primos, eram as bananas: prata, nanica, ouro, maçã. O jenipapo, a gabiroba, o maracujá e a goiaba, comia-os na fazenda dos tios Aurélio e Toninha, acompanhado dos primos. E vinham, do quintal do tio Tatão, cajás e jabuticabas. A cana era apanhada dos caminhões que a transportavam para a usina de açúcar próxima ou tirada dos canaviais à beira dos caminhos. No pequeno quintal da minha casa, meu pai plantou um pé de jamelão, que logo, logo, começou a produzir, contra todo o meu medo de que aquela árvore fosse demorar a crescer. O jamelão deixava a boca, os dentes, as mãos e as roupas com uma nódoa roxa difícil de sair.

E, agora, estou eu aqui a reavivar minha memória proustianamente, dezenas de anos depois, por um simples cheiro de jaca manteiga. Ou jaca pau, sei lá! O que vier eu traço!

Aliás, já tracei, e estava muito boa!


15 de julho de 2015

CONFITEOR


Não sou macumbeiro
Não rezo pra santo
Não faço despacho
E nem descarrego
Não bato corimba
Não guardo segredo
Não baixo espírito
Nem guio terreiro
Não leio o Torá
Não canto pra Krishna
Não sei do Corão
Nem mesmo de Vishnu
Não raspo cabeça
Não cubro a boca
Pra não comer mosca
Não guardo alimentos
Debaixo da cama
Nem mais de uma esposa
Da cama pra cima
Não tenho cristais
Pirâmides círculos
Ou mapas astrais
Não vivo telúrico
Em vilas estranhas
Não invoco Tupã
Nem danço pra chuva
Nem deixo meus mortos
Expostos às aves
Abertas entranhas
E só pra lembrar
Não entoo mantras
E não visto mantos
Kafias turbantes
E não me persigno
Ou oro contrito
Ou pago meu dízimo
A tantos e quantos
Nem tenho gurus
Mulás ou pastores
Ou fico aguardando
O momento aflito
Da hora fatal

Vivo como vivo
Et cetera coisa e tal

Salvador Dalí, A persistência da memória, 1931 (em issocompensa.com).

11 de julho de 2015

EU NÃO FARIA ISSO!


Nós somos o que somos e não o que pretendemos. Às vezes, planejamos um caminho e pegamos um atalho. E seguimos por ele vida afora. Há, no entanto, algumas profissões e funções - tais caminhos e atalhos - com as quais não tenho a mínima afinidade. Por isso, tomei a iniciativa de elencar algumas delas e as razões pelas quais nunca me senti, nem me sinto, talhado a desempenhá-las, para validar aquele velho ditado que preceitua: cada macaco, no seu galho.


Árbitro de futebol: Prezo muito minha mãe;
Médico: Não gosto de ser incomodado fora de horas;
Economista: Para mim e Paulinho da Viola, dinheiro na mão é vendaval;
Gerente de bordel: Ia ficar apaixonado pelas "meninas";
Atleta de qualquer esporte: Sou preguiçoso por princípio filosófico;
Guitarrista: Sei que jamais tocaria como David Gilmour;
Advogado: Não gosto de discussões e longas pendengas;
Ginecologista: Não misturo diversão com trabalho;
Proctologista: Sou do princípio de que cada um cuida do seu;
Cavalo-de-santo: Ando com a coluna um tanto estropiada;
Escritor de livro de autoajuda: Comungo da ideia de que muito ajuda quem não atrapalha;
Caçador de mim: Não gasto chumbo com caça miúda;
Salva-vidas: Até hoje não sei nadar;
Padre confessor: Não guardo segredos;
Ministro da Agricultura e da Pesca: Tenho simancol e não me meto a fazer o que não sei;
Pugilista: Cara que mamãe beijou vagabundo nenhum mete a mão;
Dono de botequim: Prefiro beber a tolerar bebum;
Dono de lava-a-jato: Como aposentado, já não tenho pressa para nada;
Príncipe da realeza britânica: Tenho certa compostura na vida e evito pagar mico;
Banqueiro: Acho que sempre é possível fazer alguma coisa produtiva em prol do país.

6 de julho de 2015

MINHA PESSOA ESTÁ COM UM PROBLEMA

(Para o amigo José Antônio Lahud Neto, dono da história.)


Imagem em gartic.uol.com.br.

A folhinha debulhava 1996; rigorosamente por aí, mais ou menos, nunca se sabe. Memória não é confiável. Até mesmo a de computador, que vive dando pau.

Setembrino é frentista do posto de combustível Chafariz, na esquina de Paulo Alves com Tiradentes, em Niterói.

O diretor, gerente, presidente e dono do posto, meu amigo Zé Antônio Lahud, botafoguense desapaixonado, chega naquela morna manhã, pelas nove, e vai em direção ao escritório, cumprimentando, na passagem, seus funcionários.

Tinha acabado de fumar, para que adentrasse o recinto de trabalho sem o risco de fazer ir pelos ares o sacrossanto lugar de onde tirava o sustento da família, dos empregados e de “uma cambada de mandriões do governo”, como gostava de dizer em relação aos inúmeros impostos que recolhia muito a contragosto.

Estrategicamente colocado ao pé da escada que dá acesso ao escritório, na parte superior da loja de conveniência, Setembrino, boné enterrado até os olhos, uniforme azul-marinho da empresa, diz-lhe, após responder ao cumprimento:

- Seu Zé Antônio, minha pessoa precisa ter uma conversa com a sua pessoa.

Zé Antônio só não engasgou, porque já tinha soltado a última baforada antes de cruzar a esquina. Mas conteve o riso, diante de frase tão estranha, para não melindrar aquele caboclo acobreado, cabelos de ondinhas e uma compleição física de Maguila em seus melhores dias.

- Setembrino, me dê meia hora, para organizar os papéis de ontem, e então você sobe para falar com a minha pessoa. – Ele já entrando no clima da retórica setembrina.

Talvez seja interessante dizer aqui que Zé Antônio é oriundo de pequena cidade do interior do Espírito Santo, São José do Calçado, portanto pessoa afeita a conviver com gente simples, de fala muitas vezes destrambelhada. No entanto, seu empregado o surpreendeu naquele instante.

A meia hora solicitada foi o tempo necessário para organizar os cheques que iria mandar a depósito, os que teria de segurar – borrachudos pré-datados de clientes cadastrados – e outras providências administrativas rotineiras.

Passado o tempo e nem mais um minuto, Setembrino bateu com os nós dos dedos na porta de vidro, à guisa de anúncio de que estava chegando.

- Pois muito bem, Setembrino, o que é que sua pessoa tem para falar com a minha pessoa?

O empregado, grande, porém humilde, desenterrou o boné da cabeça, solicitou autorização para sentar sua pessoa na cadeira postada diante da grande mesa de trabalho do patrão e começou a derramar seu rio de lágrimas, como diz a canção popular:

- Seu Zé Antônio, minha pessoa está com um problema sério. Minha pessoa tirou um fogão novo no crediário, pra fazer uma média com a dona patroa, e minha pessoa não conseguiu pagar as três últimas prestações. Aí a loja mandou o nome da minha pessoa para o SPC. E, aí, o senhor sabe, pobre, se perde o nome, está lascado. Então minha pessoa quer pedir um adiantamento de salário para sua pessoa, para limpar o nome de minha pessoa nesse tal de SPC. Se a sua pessoa puder fazer esse favor pela minha pessoa, minha pessoa vai ficar muito agradecida à sua pessoa.

Zé Antônio procurou conter o riso, controlou o mais que pôde sua pessoa, e perguntou quanto seria necessário para tirar o nome da pessoa do Setembrino daquele embaraço.

Pegou o talão de cheques, preencheu no valor solicitado e despachou o empregado dali, que ainda se voltou, dizendo ao sair – metade de sua pessoa para dentro da sala, metade para fora:

- Minha pessoa fica muito agradecida à sua pessoa, seu Zé Antônio. E pode contar com a minha pessoa pro que der e vier. Minha pessoa vai dar seu sangue pela firma!

Quando percebeu, pelo vidro da janela, que Setembrino já estava de volta ao seu posto de trabalho, Zé Antônio explodiu numa gargalhada sonorosa, espalhafatosa, de provocar acesso de tosse, crise aguda de enfisema pulmonar e até brotar água nos olhos.

Mas ajudou Setembrino a tirar sua pessoa de uma péssima situação.

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PS 1: Publicada originalmente em Gritos&Bochichos, em 21/1/2012.

PS 2: A pessoa do Zé Antônio vendeu o posto e parou de fumar. Agora o posto pode explodir à vontade.

2 de julho de 2015

INVERNO MEIA-ESTAÇÃO


Não queria dizer, mas tenho achado esses dias extremamente interessantes. Talvez, maravilhosos, se não for exagerar nas tintas da adjetivação.
E por que não deveria dizer? Simplesmente porque há um montão de coisas que ainda continua não dando certo. O mundo, o Brasil, o Rio de Janeiro, Niterói, Icaraí e, por fim, minha rua, afinal, estão cheios de mazelas acumuladas de anos, décadas, talvez séculos. Contudo lá fora faz um tempo de encantar os olhos.
Você não precisa ver somente o engarrafamento, assim que põe o pé na calçada do prédio. Nem mesmo aquele acidente entre duas motos, uma com um menor na garupa. Felizmente sem danos maiores.
Você não precisa sentir a tensão das pessoas que se espremem nos ônibus, no mau humor do motorista e do trocador. Nem nas notícias policiais cotidianas, ou no crescente ódio político nacional, que nos está levando a uma situação insustentável. Não somente a isso.
Lá fora o dia esbanja uma luminosidade especial. Até a praia fica mais bonita, com este sol que vem meio oblíquo a iluminar as coisas. Isto fica evidente pelas sombras gigantes dos edifícios projetadas até quase à metade do areal.
Tenho caminhado um pouco com meu neto sob o sol da manhã, para a dose diária indicada pelo bom senso. Ele mesmo, ontem, pediu para ir pela “sombrinha”, uma nesga estreita cosida aos edifícios da Pereira da Silva. Mas entendeu quando lhe disse que era preciso que ele tivesse ossos fortes. Até mesmo ele sabe que é preciso ser forte nesses tempos oblíquos.
Apesar de tecnicamente já estarmos no inverno, a temperatura sugere meia-estação. Não há calores exorbitantes, nem frios de doer. É possível sentir-se fisicamente bem com mais ou menos agasalho. Podemos fazer ou não fazer coisas com o mesmo prazer, sem o incômodo do calor ou do frio excessivos. Os corpos parecem mais prazerosos, o que se percebe pela fisionomia das pessoas por quem passo nas ruas: há uma placidez plausível nos transeuntes.
Pode ser que eu esteja totalmente enganado, mas, malgrado todas as desgraças cotidianas, sinto que os dias estão a nos convocar para um convívio de maior paz e fraternidade. A luz do sol me diz isso. A lua cheia desses dias parece querer que creiamos nisso. O vento brando que sopra da praia quer-nos convencer de que é possível.
É, a meia-estação é bem capaz de nos iludir deste jeito!

Fim de tarde no Gragoatá, Niterói-RJ (foto do autor).