2 de novembro de 2016

FOI SÓ ISSO O QUE ACONTECEU NO BARRO PRETO

(Conto baseado em fato real, ocorrido na década de 50 do séc. XX, em Carabuçu.)
           
           Os princípios da moral batista, parecia, morgaram como galho de goiabeira o espírito mulherengo e cachaceiro de Agostinho Mineiro. A conversão tinha sido um milagre aos olhos de todos. Homem dos seus cinquenta anos, Agostinho nunca fora propriamente um pai de família: mulher e filhos sofriam por suas arruaças e bandalheiras. Casos os mais diversos, envolvendo mulheres casadas, forneciam matéria para os disse-me-disse de beira de cerca, para os fuxicos em que ele entrava sempre de bobo e saía de macho. Seus filhos adulterinos se espalhavam com pés de capitão-do-mato pela estrada que ligava o Jacó à vila. Mais essa, mais aquela, não havia tempo, cairiam nas conversas, nos boas-tardes-dona-fulana, nos podia-me-fazer-o-obséquio-de-um-copinho-d’água. Marido fora de casa, em passagem de Agostinho, era marido galhado.
            Tudo isso, entretanto, já figurava como coisa do passado. Há seis meses que o cachaço trocara a cama alheia por uma bíblia. A mudança no comportamento de Agostinho fora tão radical que, nem de longe, ele permitia uma palavra menos policiada, uma piada grosseira. Hoje era outro homem, “voltado para as coisas do Senhor Jesus, meu salvador”. E mais de uma vez pregara o evangelho, ainda não bem decorado, como é do hábito da gente do interior. Nas suas falas, permeava com versículos daqui e dali a porqueira de sua antiga vida, modelo suficiente para derrotar qualquer coração mais insensível aos apelos da fé e da lei de Deus. Gostava muito de repetir a parábola do filho pródigo, ele, o próprio, para demonstrar o gozo celeste de sua volta ao rebanho dos eleitos.
            Já não mais a apreensão e a desconfiança eram as companheiras dos moradores daqueles sítios, agora deitados em paz e descanso quanto à honestidade de suas mulheres. Se antes ele era o diabo a se esconjurar, de entrada proibida em mais de uma casa, hoje era o convidado especial para um licorzinho, o bem-vindo para uma conversa decente.
            Obrava bem o Agostinho. É que, debaixo dessa sua nova fantasia, escondia o mesmo gosto pelo lençol alheio, aproveitado na confiança adquirida pela repetição desavergonhada dos textos sagrados.
            Bíblia embaixo do braço, paletó aberto no peito da camisa, a reverência do chapéu, e lá ia ele, marido ausente, a se meter na cama com a comadre fulana, com a irmã cicrana. Aquela solidão das lavouras e pastos espevitava a pouca-vergonha das mais resguardadas, fazia o desvario das mais fogosas, infernizava as frestas e os murundus das meninas-moças. Todas elas no riscado de Agostinho: essa hoje; aquela, amanhã; aquela outra, “no mais tardar, sexta-feira que vem, quando o compadre Noca for levar o milho quebrado na vila, se Deus quiser”. E tirava o chapéu em sinal de respeito, imundícia só naquela cabeça de cafajeste.
            As mulheres se entregavam mais tranquilas às suas competências sexuais, no parecer de que os maridos acreditavam mansamente nos propósitos do novo irmão em Jesus. E a bandalheira se alastrava que nem tiririca. A cada dia, era uma virtude a ir para as cucuias, uma fidelidade para o caixa-prego, uma virgindade para o cu do conde.

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            Enfurnado num vão de pedra na curva do Barro Preto, ainda não de todo curado do desarranjo intestinal que sobreviera à notícia de que sua mãe viúva e suas três irmãs esperavam filhos de Agostinho Mineiro, João Vitório assentava as armas da tocaia vingadora: espingarda, garrucha de dois canos, revólver, enxadão, foice e um facão de mato; uma caixa de cartuchos e uma de bala; ódio e ferocidade; desatino e desejo de vingança. Essas últimas, armas mortais. Por sua cabeça avariada, o demônio pintava com cores carregadas as caras risonhas das criancinhas, seus futuros sobrinhos e irmão, a rir-lhe com deboche, as gengivas banguelas, as cabeças carecas, da sua inocente crença na conversão daquele fauno sertanejo: lobisomem a emprenhar vacas e vitelas, as mulheres.
            Faria um acerto de contas com o cachorro safado. Era para isso que estava ali, os intestinos a se remoerem de dor. Era para lavar a honra da família; ele, o arrimo, o único homem. E pensar que sua mãe, viúva ainda nova, pudesse ter caído na conversa daquele salafrário. No primeiro encontro na igreja, aquele jeito visguento do canalha a se curvar respeitoso, tudo fingimento, para cumprimentar a família:
            - Dona Carmita, muito boa tarde. Como tem passado a irmã em Cristo Jesus? E as meninas como vão?
            Seria possível uma pessoa fingir aparência de evangélico, bíblia embaixo do braço, cultos aqui e ali, pregações e outras coisas, só para poder se aproximar daquelas mulheres? Seria possível, meu Deus, que a graça tinha escapado do coração de suas irmãs e mãe, tão virtuosas elas eram? E logo as quatro de uma vez só?!
            - Pelo amor de Deus, é possível um trem desses?
            Mas ali estava ele, feito bicho na toca, esperando a vítima passar para a vila, em demanda das compras da semana, caminho de ida e volta, único caminho: a curva do Barro Preto, meia distância entre a vila e o Jacó. Aninha-se o desesperado entre duas imensas pedras redondas e negras, uma vigia natural para os dois lados da estrada de chão. Ingazeira solitária projetando sombra de lua cheia na furna em que se escondia.
            Segundo seus cálculos, o porco imundo viria pela esquerda, naturalmente saboreando em pensamento as carnes da família Vitório: Maria Hortência, Adelaide, Creusa e Carmita, sua mãe. Logo sua mãe, merda?!
            - Mas esse canalha miserento vai ver com quantos paus se faz uma cangalha. Esse filho de uma égua vai provar o chumbo da minha espingarda, a espingarda do meu velho, que Deus o tenha!
            Ele, as armas, a tocaia: elementos a se fundirem pelo ódio, pela sede de vingança. As duas pedras, a ingazeira, ele ali como um lagarto, alojado na loca estreita. A estrada manhosa e mole no andar descansado dos animais de sela; um ou outro tropel mais apressado de cavalo novo, em marcha, ganhando chão, deixando para trás as casas de sua beira. Certamente essa estrada iria trazer até a mira de sua quarenta-e-quatro, até ao alcance de sua foice, o peito, o pescoço, o saco do patife.
            Ele, a tocaia, as armas. Espingarda azeitada, limpa, cartuchos novos; os dois cães ganindo sobre as espoletas impacientes; coronha bordada. Garrucha de dois canos, carga dupla, perdigotos de aço estragando quando entram e saem; cabo de madeira lascado num tiro anterior. Foice, facão de mato e enxadão, lâminas reluzentes na lua cheia; fios afiados de fender a carne, rasgá-la.
            As armas, a tocaia, ele. Olhos inflamados, campos dos fatos de ontem: a morte do pai; o choro desesperado da mãe; irmãs pelos cantos da casa, desatinadas; ele segurando o coração com o punho na garganta, olho no caixão, o braço do tio sobre o ombro. Coisas passadas nas lágrimas e nos suores do depois, da responsabilidade da casa, da preocupação com as irmãs solteiras, pasto aberto a cavalos soltos ao largo.

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            O caminho que desce o morro conduz, em direção à curva do Barro Preto, dois cavaleiros; um, o alvo; o outro, a testemunha. Tatão Camargo, roseta no vazio da mula, cigarro no canto da boca, mantém a conversa animada com o compadre. Agora, convertido ao evangelho, Agostinho só então podia desfrutar da amizade do padrinho de seu primeiro filho, homem severo nos negócios e na moral.
            O primeiro tiro do revólver derrubou da besta baia o reprodutor desvairado, o ombro esquerdo estraçalhado. Tatão estacou a ruana e saltou para socorrer o companheiro. Transfigurado pela dor, Agostinho se levantou, apoiado no amigo, costas a se voltarem para o ponto de onde partiu o disparo. Um novo varou-lhe os intestinos, dobrando-o sobre a barriga. Tatão, na iminência de receber um balaço, escondeu-se atrás da montaria, deixando a descoberto as canelas e uma parte das coxas. Não levou nem um minuto para que o carrasco, fogo nos olhos, o diabo no corpo, se apresentasse em fúria para completar o serviço. Tatão ainda tentou inutilmente conter aquela fúria insana:
            - Que é isso, João? Ficou maluco, perdeu o juízo?
            - Cala a boca, Tatão, senão sobra pr’ocê também!

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            O que sobrou de Agostinho testemunhava a carnificina do Barro Preto: seis tiros de revólver, dois de espingarda, dois de garrucha esburacadeira, dezessete foiçadas, os colhões espalhados a facão, a cabeça afundada a olho de enxadão e merda, muita merda em volta das partes esparramadas na estrada. João Vitório lavou os intestinos estragados no sangue de Agostinho.
            Três dias depois, o justiceiro foi encontrado morto, sentado junto de um angico, o braço a proteger-lhe a cabeça. Um tirambaço de garrucha arrebentara-lhe os miolos. Dera por encerrada a missão da sua vida.


Lua minguante na Bicuda, com intereferência de árvores (foto do autor).



2 comentários:

  1. Que história! que tocaia! Que texto fluido: que bela foto. Parabéns, Saint-Clair. Grande abraço.

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