(Para minha mãe, Zezé, por seu aniversário.)
Neste fim de semana e fim
de mês, minha mãe faz noventa anos. Os desavisados podem pensar que iremos
comemorar o aniversário de uma senhorinha idosa, já alquebrada pelo tempo. Ledo
engano, como diriam os antigos! Minha mãe, aliás, nossa mãe – ela tem cinco
filhos e uma fieira de netos e bisnetos – ainda está lúcida, ativa e divertida
como tem sido nesses últimos sessenta e nove anos e alguns meses. Isto só da
parte que me cabe testemunhar, como filho mais velho.
Particularmente, posso
dizer que aprendi muita coisa com ela, além da visão otimista e descontraída da vida. Por exemplo, o gosto pela poesia, pela
literatura. Ela sempre foi uma leitora interessada. E tanto os livros de fundo
religioso, quanto os da literatura dita profana, estiveram sob seu olhar
atento. Eu, ainda mal alfabetizado, li pela primeira vez alguma coisa de
Casimiro de Abreu que ela tinha em casa:
Canção do exílio e outras poesias. Li também ainda miúdo seu livro de
Raimundo Correia, o famoso poeta das pombas (“Vai-se a primeira pomba
despertada...”). E nunca mais parei com esta mania de ler.
Tenho a impressão, quase certeza,
de que esta busca pela literatura era uma maneira de dar vazão ao seu espírito
aventureiro, que nunca pôde ser exercido, dadas as condições de vida a que
estava ligada: casada, mãe de filhos, e todos os demais compromissos disto
decorrentes.
A par disso, ou talvez
embalada por isso, ela levou a vida pobre e humilde de uma mulher do interior
com estoicismo e dedicação. Criou seus filhos, juntamente com o nosso pai, com
rígidos princípios de ética e correção no trato com o semelhante. E os
encaminhou à religião, de que até hoje é segura devota. Se, por acaso, algum de
nós errou, culpa não lhe cabe. E isto também posso testemunhar a seu favor.
No final da vida de meu
pai, cujo falecimento tem três anos, ela se dedicou a ele integralmente, sem
abrir mão de um momento sequer do seu cuidado. Tomou para si, com o auxílio de
minhas irmãs, o zelo pelos últimos dias do chefe da família que, aos poucos,
foi tendo a saúde deteriorada. E, quando ele deu seu último suspiro, lá estava
ela ao lado, como a ampará-lo no derradeiro instante. Chorou, como era de se
esperar. Mas não se desesperou, porque deposita sua esperança numa vida melhor,
tão logo desembarquemos desta experiência terrestre.
Depois deste momento
difícil, às vezes tem a emoção aguçada por certas lembranças, mas seu coração
está em calma, pois cumpriu o que a consciência sempre lhe ditou, com todas as
letras e entonações. Por isso, nunca fugiu àquilo que os cristãos como ela
identificam como a cruz que se tem a carregar, como Cristo. E, mesmo se pesada,
diz que a sua cruz é leve, seu fardo é suave, porque crê e tem esperança.
Os seus noventa anos nem
parecem tantos assim, pois ainda está ativa, trabalhando, lendo seus livros,
interessando-se por política, por notícias e novidades que enchem os meios de
comunicação. E praticando a vida religiosa de que tanto gosta.
Como há algum tempo perdi
a fé, ela se põe a pedir dobrado por mim, porque diz que tenho um compromisso
com ela, assim que este jogo for terminado, e passemos a outro plano. Não sei
se vou conseguir cumprir, embora, abstraída a descrença, continue praticando
todos os ensinamentos de solidariedade, respeito ao próximo e despojamento e
modéstia, com que criou todos nós.
Nestes noventa anos, minha
mãe pode orgulhar-se de cada gesto seu, por menorzinho que tenha sido, porque
olha em volta – aliás, olha para frente – e vê sua existência multiplicada por
filhos, netos e bisnetos, todos também orgulhosos dela.
Parabéns, dona Zezé!
Parabéns, mamãe!
Dona Zezé, com a imagem de um de seus santos de devoção, na comemoração junina da família, em 2015, "O arraiá da Bizezé" (foto do autor). |